Enquanto comiam, tomou Jesus um pão, e, abençoando-o, o partiu, e o deu aos discípulos, dizendo: Tomai, comei; isto é o meu corpo. A seguir, tomou um cálice e, tendo dado graças, o deu aos discípulos, dizendo: Bebei dele todos; porque isto é o meu sangue, o sangue da nova aliança, derramado em favor de muitos, para remissão de pecados. E digo-vos que, desta hora em diante, não beberei deste fruto da videira, até aquele dia em que o hei de beber, novo, convosco no reino de meu Pai. E, tendo cantado um hino, saíram para o monte das Oliveiras. (Mateus 26.26-30).
No dia 31 de outubro, a Reforma comemora a sua deflagração contra os abusos de Roma. Todavia, quando lemos os artigos que falam sobre este momento singular da história, geralmente, temos a impressão de que a Reforma foi um movimento onde houve uma unanimidade em todos os seus particulares, mas a realidade é outra bem distinta da que pensamos, existiu grandes divergências entre eles. Este breve artigo visa abordar, de forma resumida, uma delas: a Eucaristia ou Santa Ceia.
A Santa Ceia sempre foi considerada como o vínculo de paz e unidade entre os crentes, todavia, foi motivo de discórdias dentro da chamada Reforma Protestante. É notório que o problema da Santa Ceia está vinculado as concepções cristológicas sustentadas pelos reformadores, e assim, a Eucaristia tem como pando de fundo a questão da presença ou não de Cristo nos elementos.
Antes da Reforma ocorrer, a doutrina da Eucaristia era diferente da que nós temos hoje. A primeira realidade é que na “igreja primitiva, a celebração da Ceia do Senhor era o ponto central da adoração cristã”. (GEORGE, Timothy, 1993, p.145). Curiosamente o sacramento da Santa Ceia foi corrompido pala concepção da Transubstanciação (a substância se transforma). Tal doutrina passou a ser doutrina oficial na Igreja de Roma no quarto Concílio de Laterano em 1215 (BERKHOF, Louis, 1989, p.226.). Mas, essa idéia é bem anterior conforme podemos ver, pois, “em 818 d.C um teólogo medieval chamado Pascácio Radbert formalmente propôs a doutrina de que os elementos, pelo poder divino, literalmente se transformam no mesmo corpo que nasceu de Maria” (BERKHOF, Louis, 1989, p.226).
No período da Idade das Trevas – ou Idade Média – a Santa Ceia passou a ser vista como algo miraculoso que protegia o viajante da doença, preservava os marinhos da fúria do mar, dava ainda a provisão na lavoura; chegava-se ao absurdo de dizer que a Ceia dava uma boa esposa ao solteiro (TAPPERT, Theodore G., 1961, p.41).
Os Reformadores e a Eucaristia
Diante disso, a Reforma se colocou contra estas concepções sobre o sacramento da Santa Ceia. Lutero tinha uma visão muito individual quanto a este sacramento ele “criticou a negação do cálice aos leigos” (SIERPIESKI, Paulo, sem data, p.8.) Ele expressou dúvidas e criticou a doutrina da Transubstanciação. Lutero rejeitou a concepção de que os sacramentos fossem obras meritórias, e ensinou que eles eram dons da graça de Deus à sua Igreja e devem ser recebidos com fé. (LUTERO, Martinho, 2006, p.50).
O problema se manifestou quando Zwínglio tomou ciência de que Lutero estava ensinando que o corpo de Cristo estava literalmente presente na eucaristia, enquanto o reformador Zwínglio ensinava que o pão e o vinho, da Santa Comunhão, eram apenas memoriais da morte de Cristo, e assim, o estopim estava ativado. Lutero escreve uma carta a um amigo dizendo que a interpretação do reformador Zwínglio estava equivocada (STROHL, Henri, 1989, p.144); o reformador alemão tinha a seu favor um tese de um padre que defendia a consubstanciação que nunca foi negada oficialmente pela Igreja Romana (STROHL, Henri, Ibid, p.225), isso ainda alimentou a concepção de que Lutero estivesse certo.
Houve uma guerra de escritos sendo trocados entre ambos, pois, discordavam energicamente quanto a este assunto; os livros de ambos chegaram a ser vendidos lado a lado pelos jornaleiros da época. Lutero não estava disposto a dizer que a Eucaristia era um mero “símbolo das realidades espirituais” (GONZALEZ, Justo L., 1983, p.71). A grande arma de Lutero era as palavras da Instituição de Cristo “isto é o meu corpo”, não “indica a transubstanciação, mas aponta para o fato de que Cristo está literalmente sobre o pão, ao lado do vinho e sob ambos os elementos” (Idem).
Uma Solução Proposta: Uma Divisão Permanente
Diante de tamanha guerra decidiu-se fazer um debate entre os grupos – luteranos e zwinglianos – para se resolver o dilema. Filipe de Hesse propôs que o debate fosse realizado em seu Castelo em Marburgo no ano de 1529. Lutero estava acompanhado de seu ilustre amigo Melanchton e com outros colegas. E Zwínglio estava acompanhado de Ecolampádio, Bucer que era os líderes principais dos Zwínglianos. O fato curioso neste debate é que dos quinze pontos discutidos entre Lutero e Zwínglio quatorze deles ambos estavam de acordo, mas na questão da Eucaristia ambos discordavam.
O reformador Zwínglio chegou a clamar com lágrimas que desejava concordar com os luteranos (GEORGE, Timothy, Op.Cit, p.150). Travou-se uma guerra exegética. Zwínglio diz que Lutero defende uma doutrina que não pode ser comprovada pelas Escrituras, e não tem a menor coragem de citar uma única passagem. Lutero estava com uma lousa coberta com um pano, e após, a declaração de seu opositor, removeu o pano, e no quadro estava escrito “Este é o meu corpo!”, então, Lutero dirigiu-se a Zwínglio dizendo: “Aqui está a nossa passagem das Escrituras. Você ainda não a tirou de nós” (Idem). Lutero rejeitou as figuras de linguagem usadas por Zwínglio para mostrar que ali estava empregada uma linguagem não literal (KLEIN, Carlos Jeremias, 2006, p.77-82). Mas isso foi em vão. Ambos os grupos ficaram divididos definitivamente.
O Exegeta da Reforma: Uma Visão Conciliadora
Na discussão entre Lutero e Zwínglio havia um homem que pensou profundamente sobre essa questão da Eucaristia. Ele nos ofereceu um esclarecimento bíblico e teológico sobre a Ceia do Senhor e a presença de Cristo na mesma. O nome deste reformador é João Calvino considerado o maior exegeta da Reforma Protestante. Para Calvino a Eucaristia era mais que uma simples “cerimônia de comemoração do Sacrifício de Cristo: era um evento de comunhão com o próprio Cristo” (CALVINO, João, 1999, Livro 4, Cap.14, parag.1,9). Embora ele aceitasse algumas afirmações de Zwínglio, afirmava que Cristo estava presente no Sacramento da Ceia mediante a ação do Espírito Santo, e assim, de fato, o Sacramento poderia ser chamado de Meio de Graça onde os eleitos recebem o que a eles é destinado no sacramento, enquanto que os falsos crentes recebem juízo de Deus; logo, a concepção calvinista sobre a Ceia é que Cristo está real, porém, espiritualmente nos elementos.
Esta concepção de Calvino é a posição das Igrejas Presbiterianas e Reformadas conforme expressa seus símbolos de Fé (Confissão de Fé de Westminster: Cp.27, Seç. 3; Cp.29, Seç. 1,5,7; veja-se também o Catecismo Maior de Westminster nas perguntas: 162, 168,170). O que aprendemos deste assunto? Aprendemos que Reforma foi um movimento onde havia de fato uma reflexão teológica. Aprendemos que os reformadores tiveram que lidar com questões que mereciam ser esclarecidas; mas também aprendemos que aquilo que deveria unir a fé tornou-se uma divisão entre eles. De sorte que mundo está dividido assim: os romanos com a Transubstanciação; os luteranos com a Consubstanciação; os Zwínglianos com a concepção Memorial e os calvinistas com a noção da Presença Real de Cristo nos sacramentos de forma Espiritual. Isso deveria nos entristecer? Não. Isto deveria nos estimular a orarmos para que a Igreja de Cristo mostre sua unidade nestas questões singulares.