sexta-feira, 11 de março de 2011

Novo Calvinismo: uma onda que (ainda) não pegou

Ser calvinista (ou reformado) no Brasil é uma "cruz" das mais pesadas. Os evangélicos são minoria em um país católico. Os tradicionais são minoria em meio a evangélicos pentecostais. E os reformados são minoria no grupo dos tradicionais. Se há uma espécie em extinção religiosa no Brasil, com certeza é a dos seguidores de João Calvino.

Isto explica a imensa alegria com que foi recebida uma reportagem da revista Time, que apontou o novo calvinismo como um dos dez movimentos que podem mudar o mundo agora. A euforia foi tamanha que a reportagem foi citada em blogs conceituados, como o da editora Fiel e o O Tempora, O Mores. Se no Brasil os calvinistas são vistos como seres exóticos, nos Estados Unidos a teologia reformada mostrava a sua força e era reconhecida, inclusive pela sociedade secular.

No entanto, até aqui, o novo calvinismo ainda não disse a que veio. Pelo menos no Brasil.

Made in USA
O problema começa com a falta de divulgadores do novo calvinismo. Os maiores são a editora Tempo de Colheita e blogs como o Voltemos ao Evangelho e o iPródigo, que traduzem posts e vídeos de expoentes do movimento, como Paul Washer, Mark Driscoll e John Piper.
Mark Driscoll

É verdade que algumas editoras tradicionais (Cultura Cristã, Fiel, Shedd Publicações e Vida Nova) também têm publicado livros de destacados representantes do novo calvinismo, principalmente John Piper e Wayne Grudem. Mas é igualmente verdadeiro que o interesse é mais doutrinário do que eclesiológico. Ou, dito de outra forma, os novos calvinistas são publicados pelo que falam de "calvinista" e não pelo que tem de "novo".

Ou alguém imagina a Editora Fiel se juntando a Grudem, Driscoll e Piper na recusa deles ao cessacionismo? O mesmo pode ser dito da liturgia de Driscoll sendo endossada pelo Supremo Concílio da Igreja Presbiteriana do Brasil. No Brasil, grosso modo, os novos calvinistas são enquadrados simplesmente como calvinistas.

O resultado é fácil de se prever: no Brasil, o novo calvinismo é muito mais uma curiosidade do que um movimento. Não há nenhuma igreja de grande porte ou pastor de projeção nacional que se assuma como novo calvinista. Não temos escritores nacionais que produzam literatura dentro dessa linha e a ampla maioria dos blogs dedica-se mais a traduzir os autores norte-americanos. O mesmo pode ser dito das editoras.

Em suma: no Brasil, se queremos saber o que é novo calvinismo, temos que olhar para os Estados Unidos.
Novo calvinismo não..."New calvinism"

Novo o quê?
Uma outra consequência é a de que o membro comum das igrejas e os pastores que não navegam com frequência na Internet nem sabem de que se trata o novo calvinismo. Na prática, a maioria das igrejas reformadas ainda não se enxerga como "missional" e prende-se às mesmas condutas litúrgicas e evangelísticas de sempre.

Na verdade, o que acontece é bem o contrário: há o ressurgimento de um "neopuritanismo", com a defesa de uma liturgia tão engessada que nem os hinos encontram lugar. Não é incomum ver blogs calvinistas rompendo o diálogo com outros ramos do protestantismo, alguns chamando pentecostais de apóstatas e outros tachando os arminianos de hereges. Evangelismo que é bom...

Só há uma conclusão óbvia quando se analisa o cenário brasileiro: a contextualização cultural do Evangelho só é possível nas igrejas emergentes. A coisa chega a tal ponto que a Mocidade Para Cristo recomendou a leitura do herético Brian McLaren no Treinamento de Líderes de Jovens e Adolescentes deste ano, deixando Driscoll de lado. Parece que o único caminho para se ter uma igreja cristã própria para o século XXI é cair na heresia. E líderes brasileiros que apontam neste sentido não faltam, como Ed René Kivitz, Ricardo Gondim, Caio Fábio...

Essa ignorância tem o seu preço. Embora o novo calvinismo não seja um movimento homogêneo, Driscoll aponta marcas que provam que há alternativas à igreja emergente:

- Teologia reformada;
- Relacionamentos complementares (homens e mulheres);
- Ministério cheio do Espírito Santo (continuísmo, rejeição ao cessacionismo);
- Prática missional.

Dito de outra forma, o novo calvinismo preserva o que é imutável (teologia reformada) e muda o que deve mudar. Pena que só você, que lê blogs na Internet, sabe disso. Agora, pergunte aos seus diáconos, presbíteros, às senhoras se elas sabem algo a respeito.

À procura de líderes
Penso que isso só vai mudar quando o novo calvinismo encontrar referenciais no Brasil, que pensem na igreja reformada brasileira do século XXI e estejam dispostos a levar esse pensamento para o dia-a-dia das igrejas locais. Particularmente, não creio que os expoentes do calvinismo tradicional se dediquem a esta tarefa por uma razão muito simples: eles não endossam o que há de "novo". É preciso que outros se disponham a isso.

Até lá, entendo que é preciso se libertar um pouco das traduções e começar a dar lugar a uma produção teológica nacional. Blogs como o Novo Calvinismo, o Filipe Niel, o Pensar... , o Cinco Solas ou o Guilherme de Carvalho precisam ser mais valorizados e conhecidos. Seria interessante ler mais textos de Josaías Cardoso no iPródigo ou autores nacionais no Voltemos ao Evangelho. 

E, claro, seria ótimo se pastores como Jeremias Pereira e Hernandes Dias Lopes se identificassem abertamente com as ideias do novo calvinismo. Seria ótimo se eles se juntassem a outros pastores, como Juan de Paula e Helder Nozima na defesa do que há de "novo" no calvinismo. Poderia ser o que falta para o novo calvinismo "pegar" no Brasil.

Graça e paz do Senhor,

Helder Nozima
Barro nas mãos do Oleiro
Fonte

Não Fez Mais que Sua Obrigação

Prefeitura de Amparo reajusta o salário dos Servidores

         Prefeitura de Amparo reajusta o salário dos Servidores de acordo com o salário mínimo, pagando em fevereiro com a diferença de janeiro.

O Pecado da Incredulidade [COMENTÁRIO]

A passagem de Marcos 6.1-6 - nos mostra nosso Senhor Jesus Cristo em "sua terra", Nazaré, onde fora criado. Este texto é uma melancólica ilustração da iniqüidade do coração humano e merece especial atenção.

Vemos, em primeiro lugar, quão inclinados são os homens a subestimar as coisas com as quais estão familiarizados. Os homens de Nazaré "escandalizavam-se" em nosso Senhor. Eles achavam inconcebível que alguém que vivera entre eles por tantos anos, cujos irmãos e irmãs eles conheciam, merecesse ser seguido como um mestre do povo.
Nunca houve uma localidade na terra com tantos previlégios como Nazaré. Durante trinta anos, o Filho de Deus residira naquela cidade, percorrendo as suas ruas para lá e para cá. Durante trinta anos, Ele andara com Deus, perante os olhos dos habitantes da cidade, vivendo uma vida perfeita e imaculada. Porém, isso foi tudo em vão para eles. Não estavam preparados para crer no evangelho, quando o Senhor voltou ao seu convívio e pôs-se a ensinar em sua sinagoga. Não podiam acreditar que alguém cujo rosto conheciam tão bem, com quem tinham vivido tanto tempo, comendo, bebendo e vestindo-se como qualquer um deles, tivesse qualquer direito de reivindicar sua atenção. "E escandalizavam-se nele."

Em tudo isso, não há coisa alguma que nos deva surpreender. O mesmo está sucedendo ao nosso redor, a cada dia, em nossa própria terra. As Escrituras, a pregação do evangelho, as ordenanças cristãs e os abundantes meios de graça que desfrutamos estão sendo continua-mente subestimados pelo povo de nossa pátria. Eles estão de tal forma acostumados com esses privilégios que nem ao menos os reconhecem como tal. É uma espantosa verdade que, no campo da religião, mais do que em qualquer outra atividade humana, a familiaridade gera o desprezo.

Há um grande consolo nesse aspecto da experiência de nosso Senhor para alguns que fazem parte do povo de Deus. Há nisso um consolo para os fiéis ministros do evangelho, os quais se sentem desanimados diante da incredulidade do povo em geral, ou de seus ouvintes regulares. Há consolo para os verdadeiros crentes, que se sentem sozinhos entre seus familiares, vendo todos eles apegados ao mundo. Lembrem-se esses crentes que estão bebendo do mesmo cálice que o seu amado Mestre bebeu. Lembrem-se que Ele também foi desprezado por aqueles que melhor O conheciam. Aprendam que a conduta mais coerente possível não faz outras pessoas adotarem os seus pontos de vista e opiniões, tal como sucedeu ao povo de Nazaré. Que esses crentes saibam que as entristecedoras palavras de seu Senhor, em geral, cumprem-se na ex¬periência diária dos seus servos: "Não há profeta sem honra senão na sua terra, entre os seus parentes, e na sua casa".

Em segundo lugar, aprendamos quão humilde foi a posição que nosso Senhor condescendeu em ocupar em sua vida, antes de iniciar seu ministério público. Os habitantes de Nazaré comentaram a respeito dEle, com desprezo: "Não é este o carpinteiro...?"

Essa é uma expressão notável, encontrada exclusivamente no Evangelho de Marcos. Ela nos mostra claramente que, durante os primeiros trinta anos de sua vida, nosso Senhor não se envergonhou de trabalhar com as próprias mãos. Há algo de admirável e de avassalador nesse pensamento! Aquele que criou os céus, a terra, o mar e tudo quanto neles existe, Aquele sem o qual nada do que foi feito se fez, o próprio Filho de Deus, tomou sobre Si mesmo a forma de servo, e do suor de seu rosto comeu o seu pão, como qualquer homem trabalhador. Isso, reflete "o amor de Cristo, que excede todo entendimento" (Ef 3.19). Embora rico, contudo, por amor a nós, Ele se fez pobre. Jesus humilhou--se, tanto no decorrer de toda a sua vida como na ocasião de sua morte, para que, por seu intermédio, os pecadores pudessem viver a reinar com Ele, eternamente.

Quando estivermos lendo esta passagem, lembremo-nos de que não há pecado algum na pobreza. Nunca precisaremos envergonhar-nos de ser pobres, a menos que a pobreza seja o resultado de nossos próprios pecados. Jamais deveríamos desprezar as pessoas por serem pobres. É uma desgraça alguém ser dado a jogatinas, ou ser um alcoólatra, ou um homem ganancioso, ou um mentiroso; entretanto, não há qualquer desgraça em trabalhar com as próprias mãos e ganhar o pão com o próprio labor. A idéia da carpintaria em Nazaré, deveria lançar por terra os altivos pensamentos de todos aqueles que fazem das riquezas um ídolo. Não pode ser desonroso ocupar a mesma posição que foi ocupada pelo filho de Deus e Salvador do mundo.

Em último lugar, percebemos quão excessivamente pecaminoso é o pecado da incredulidade. Duas notáveis expressões foram utilizadas para ensinar-nos essa lição. Uma delas é que nosso Senhor "não pôde fazer ali nenhum milagre, senão curar uns poucos enfermos", em razão da dureza dos corações daquelas pessoas. A outra expressão é que nosso Senhor ' 'admirou-se da incredulidade deles''. A primeira dessas expressões mostra-nos que a incredulidade tem o poder de furtar dos homens as melhores bênçãos. E a segunda mostra-nos que a incredulidade é um pecado tão irracional e suicida que deixou o próprio Filho de Deus admirado.

Nunca será demais nossa vigilância contra o pecado de incredulidade. Esse é o mais antigo pecado da humanidade. Começou no jardim do Éden, quando Eva deu ouvidos às promessas do diabo, ao invés de crer nas palavras de Deus:"Certamente morrerás" (Gn 2.17). A incredulidade é o mais ruinoso de todos os pecados, quanto às suas conseqüências. Esse pecado trouxe a morte à humanidade inteira. Manteve o povo de Israel fora da terra de Canaã por quarenta anos. Esse é o pecado que, de modo especial, está lotando o inferno. "O que não crê já está julgado" (Jo 3.18). Esse é o mais insensato e incoerente de todos os pecados. Ele leva o ser humano a rejeitar a mais clara das evidências; ele fecha os olhos do homem diante do mais claro testemunho e leva-o a crer na mentira. E, o pior de tudo, a incredulidade é o pecado mais comum neste mundo. Milhares de pessoas são culpadas desse delito. Quanto à profissão verbal, muitas delas se dizem cristãs. Elas nada sabem acerca das idéias de Paine e de Voltaire. Mas, na prática, elas são realmente incrédulas. Não crêem na Bíblia Sagrada, nem recebem Cristo como o seu Salvador.

Exerçamos cuidadosa vigilância sobre os nossos próprios corações quanto a questão da incredulidade. O coração, e não a cabeça, é a sede desse misterioso poder. O que torna os homens incrédulos não é nem a ausência de evidências, nem as dificuldades da doutrina cristã. Antes, é a falta de desejo para crer. Eles amam o pecado. Estão presos ao mundo. Nesse estado mental, nunca lhes faltam razões plausíveis para confirmar a vontade que têm de não crer. O coração humilde, semelhante ao de uma criança, é o coração que crê.

Continuemos a vigiar os nossos corações, mesmo depois de havermos crido no Senhor. A raiz da incredulidade nunca é totalmente destruída. Basta que deixemos de vigiar e de orar, e logo surgirá uma grande safra de incredulidade. Nenhuma oração é tão importante quanto aquela que os discípulos fizeram: "Senhor: aumenta-nos a fé" (Lc 17.5).

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Comentário ao evangelho de Marcos, capítulo 6, publicado no Brasil pela editora Fiel
FONTE: O Calvinismo

quinta-feira, 10 de março de 2011

Calvinistas Também Pensam:

Uma Introdução à Filosofia Reformada 
Por Ricardo Quadros Gouvêa

O que acontece quando um cristão reformado reflete nas implicações filosóficas, científicas e práticas da sua fé? Uma revolução do pensamento teórico com drásticas conseqüências práticas! Nada pode ser mais salutar à igreja do que ser confrontada com os resultados da fé bíblica conforme expostos pela filosofia reformada. Minha expectativa é que isto se torne também a convicção dos leitores ao completarem a leitura deste artigo.
Pensamento antitético: marca da filosofia reformada

"Nos últimos dias sobrevirão tempos difíceis". Os homens, inimigos de Deus, "jamais podem chegar ao conhecimento da verdade" (2 Tm 3.1-7). Paulo não poderia imaginar a sutileza de raciocínios em que tal inimizade se revelaria. O discurso no Areópago (At 17.22-31), tão necessário hoje quanto no dia em que foi proferido, é mais desprezado que nunca pelos cultos doutores que, em rebeldia contra seu Criador (Rm 1.18-21), repetem o motejar dos atenienses: "Sobre isso, Paulo, nós te ouviremos numa outra ocasião" (At 17.32). A filosofia não-cristã sofre de um racionalismo ingênuo desde suas origens helênicas, e a intelectualidade moderna abraçou definitivamente a utopia do ideal científico e o mito da objetividade empírica, a falácia autofágica dos pressupostos humanistas, como a autonomia do pensamento, que implica na rejeição de toda autoridade e na absolutização do juízo crítico.(1) Hoje temos assistido à consumação inevitável de tais compromissos anti-cristãos. O homem se mostra confiante na sua racionalidade a qual supõe potencialmente onisciente, adorando-se como criador e provedor, arquiteto e intérprete do universo, centro de toda a realidade, e o sentido do mundo e da existência. Ele ouve a voz que lhe sussurra: "Certamente não morrerás; pelo contrário, tu serás como o próprio Deus!" (Gn 3.4-5).
Possibilidade e necessidade de uma filosofia reformada

Ettiene Gilson considerou uma filosofia calvinista impossível.(2) O ponto-de-vista reformado de que o homem é totalmente corrupto,(3) e que não pode, portanto, chegar à verdade, exceto tendo por base a revelação divina, impediria a ereção de uma filosofia cristã. Os calvinistas assumem a revelação de Deus como absolutamente determinativa, e rejeitam a idéia de uma teologia natural. Assim, sugere Gilson, é impossível fazer filosofia, e resta espaço apenas para a teologia.(4) Todavia, a noção reformada da revelação não só dá amplo espaço para o pensamento filosófico, como também é o único solo adequado para o florescimento de uma verdadeira filosofia cristã,(5) uma filosofia que pode ser genuinamente objetiva, como as filosofias imanentistas jamais podem ser.(6)
Precisamos de uma filosofia porque o pensamento teórico não é possível sem a estrutura filosófica que o sustenta. Não é possível fazer teologia, nem ciência, sem um fundamento filosófico.(7) Mas a deficiência das antigas filosofias cristãs, nas quais as teologias cristãs vem se baseando por séculos, tornou-se patente. O pensador reformado não pode mais agüentar os pressupostos platônicos, aristotélicos, tomistas, cartesianos, kantianos, ou de qualquer outra espécie espúria que serviram e servem de sustentação para a sua ponderação teórica. O pensador reformado tornou-se epistemologicamente consciente, e exige um novo fundamento que se mostre de acordo com a sua fé. Mas onde podemos encontrar uma filosofia que nos sirva? A filosofia de Tomás de Aquino de fato não nos serve. Trata-se de uma filosofia de síntese, em que a fé cristã é submetida a um desconfortável processo de adaptação ao aristotelismo. Nela, Deus não se distingue inteiramente da sua criação posicionando-se meramente no topo da grande escala dos seres. O elemento transcendente na filosofia tomista não é Deus, mas sim o "Ser". O deus do tomismo não é o trino Deus auto-suficiente das Escrituras, mas sim a causa-não-causada, mecanicamente ligado ao cosmos e dependente dele. Que fazer? Retornamos a Agostinho? Sim, sem dúvida, naquilo em que o bispo de Hipona é irrepreensivelmente evangélico, naquilo em que foi um verdadeiro precursor do pensamento reformado; mas também Agostinho se deixou levar pelo "canto das sereias" grego, e nos oferece uma filosofia cristã que carrega os farrapos tresandantes e desnecessários de um platonismo decadente, em vez da nudez genuína de Jesus Cristo na cruz.

Que opções nos restariam então? As novas sínteses modernas e pós-modernas? O racionalismo de Descartes? O empiricismo de Berkeley? Ou somos obrigados a sucumbir diante da crítica kantiana, pretensamente redentora da fé cristã? Ou resta-nos, apenas, o desespero irracional e subjetivista de Kierkegaard e seus sucessores? Ou por fim devemos nos render à disseminação plurívocado sentido,(8) e ao consequente relativismo absoluto apregoado por Jacques Derrida?(9) Não será esta uma causa perdida? Não será nossa única saída a opção dialética do irracionalismo barthiano? Não seria melhor abraçarmos um fideísmo aparentemente confortável, e deixarmos questões tão complexas e abstratas para o banquete intelectual dos incrédulos? De forma nenhuma! Opções irracionais e fideístas não são menos filosóficas que qualquer outra. Não há pensamento que não seja fundamentado em pressupostos filosóficos. E se não é possível escaparmos da abstração teórica, da estruturação filosófica, das pressuposições aprioristas, então o melhor é que tomemos o cuidado de abraçarmos pressupostos escriturísticos, através de uma filosofia bíblica e reformada, que teoriza para a glória de Deus, e com os olhos fixos no Senhor Jesus Cristo.
Origens da filosofia reformada: os primeiros mestres

Os frutos filosóficos do Iluminismo não trazem alento ao coração do pensador reformado, o qual não pode senão horrorizar-se diante das diferentes opções que se lhe apresentam quando se trata de adotar uma filosofia cristã moderna. Será então que filosofia tornou-se hoje sinônimo de apostasia, e temerária rejeição da revelação de Deus? Será verdade, por outro lado, que a mentalidade Reformada se encontra em tal estado de embotamento que não tenha uma resposta antitética que seja também positiva e atual? Será possível que nossa única opção seja o obscurantismo dos iletrados, e o isolacionismo dos indispostos? De forma nenhuma! É minha convicção que o nosso Deus tem dado início em nossos dia àquilo que podemos chamar de um novo movimento do Espírito, levantando homens aptos a contrargumentar e a derrotar especulações e sofismas, trazendo todo pensamento à obediência de Cristo (2 Co 10. 3-5).

Refiro-me aos proponentes da filosofia reformada, cuja nau há muito navega com todas as velas enfunadas em meio às ondas bravias do pensamento apóstata, e segue em alto mar, clamando à intelectualidade contemporânea um retorno à sanidade do fides quaerens intellectum, da distinção fundamental Criador-criatura, da submissão do pensamento humanamente deficiente à autoridade revelacional de Deus em Jesus Cristo. Num tempo em que o paganismo se agiganta e a cristandade se fragmenta, se corrompe, e se emascula, eles surgem como apregoadores de uma nova apologética e de uma filosofia reformada, fundamentada na Escritura, erguida sobre os cânones calvinistas, que surge para eliminar uma lacuna que há muito traz um quase sempre indiagnosticável incômodo ao pensador cristão que se posiciona na linha de João Calvino.

A filosofia reformada é praticamente desconhecida na nossa pátria.(10) Fundada pelo renomado teólogo, filósofo e estadista holandês Abraham Kuyper (1837-1920), pensador original e enciclopédico,(11) ela foi desenvolvida por Herman Bavinck (1854-1921) que lançou, juntamente com Kuyper, os fundamentos da filosofia reformada,(12) Herman Dooyeweerd (1894-1977), o grande sistematizador da filosofia Reformada, mestre da crítica transcendental, pai da filosofia cosmonômica,(13) Dirk H. Theodor Vollenhoven (1892-1978),(14) Hendrik G. Stoker (1899-1994),(15) e Cornelius Van Til (1895-1987).(16)
Princípios elementares da filosofia reformada

Neste artigo introdutório não será possível fazer muito mais além de apresentar ao pensador reformado brasileiro os princípios básicos da filosofia e da apologética reformada. Muitos conceitos parecerão estranhos, e as idéias poderão criar dúvidas. Faz-se necessária uma explicitação conceitual mais aprofundada que ficará para outra ocasião. O que segue, portanto, é meramente uma vista panorâmica e propedêutica dos fundamentos da filosofia reformada.
Calvinismo integral: uma visão completa da vida e do mundo

Para o pensador calvinista, tudo na vida é religião. O calvinismo é uma biocosmovisão completa que envolve todos os aspectos da vida e todas as áreas do conhecimento humano.(17) O calvinista não pode se satisfazer apenas com uma teologia reformada; ele busca uma filosofia igualmente reformada, uma ciência, uma arte, uma cultura, uma política reformada. Todas as áreas da ciência podem e devem ser exploradas a partir de pressupostos cristãos reformados, através da examinação pressuposicional (dos fundamentos teóricos) e estrutural segundo o motivo bíblico elementar da criação-queda-redenção(18) (da sua ordem criada, das disfunções resultantes do pecado, e da retauração pós-lapsariana em Cristo).(19) Como dizia Van Til: "Não há um centímetro quadrado da vida da qual Cristo não diga `é meu'"(20) (Mt 28.18). Deus é absolutamente soberano sobre toda a criação bem como sobre todas os aspectos da realidade e todas as esferas da vida humana. A soberania absoluta de Deus (Sl 139; Is 46.9-10; Ef 1.3-14) é o conceito central e fundamental do pensamento reformado.
A distinção Criador-criatura: diferença qualitativa infinita

Deus não pode, evidentemente, ser confundido com a criação.(21) A filosofia calvinista é teísta. Em oposição aos sistemas monistas que identificam o cosmos criado com Deus (panteísmo), ou eliminam a idéia de Deus inteiramente (ateísmo), ela pode ser também considerada dualista. Existe uma diferença qualitativa infinita entre a mente de Deus e a mente humana (Is 55.8). Não é que Deus saiba infinitamente mais que o homem, mas sim que o saber divino é de qualidade diferente do saber humano.(22) A revelação divina é a fronteira entre Deus e o cosmos.(23) A revelação de Deus traz sentido ao cosmos criado, e exerce uma função legisladora sobre o mesmo. Deus não se limita à revelação; Deus é o criador do cosmos e das leis que o regem, e não está sujeito às leis cósmicas, nem mesmo às leis da lógica.(24)
Filosofia do pacto: tudo na vida é fundamentalmente religioso

O conceito de religião representa, na filosofia calvinista, não a noção popular de religiosidade, mas sim o verdadeiro sentido da palavra, isto é, a religação do indivíduo com o seu Criador. Ora, só há um caminho para a redenção e a reconciliação com Deus: a fé em Jesus Cristo. Para o pensador reformado, portanto, a religiosidade é uma função do ser humano, e todos os seres humanos são essencialmente religiosos, uma vez que todos os homens se posicionam em submissão ou em rebeldia contra Deus, respondendo positiva ou negativamente à salvação em Cristo oferecida pela graça divina, segundo a soberania do próprio Deus. O pensamento humano é controlado e guiado por princípios fundamentais que refletem uma atitude religiosa básica. Esta é, na verdade, uma noção básica da teologia do pacto: nós somos criaturas religiosas. Nós fomos criados para conhecer a Deus e ter comunhão com ele. Nós temos que depender de Deus. Quando não o fazemos, não é que deixamos de ser religiosos, mas sim que desviamos nossa fé em direção de algum outro objeto, e tornamo-nos idólatras, infiéis para com Deus, adorando a criatura em lugar do Criador (Rm 1.25). O "coração" humano se dirige a Deus ou se afasta dele em rebeldia (Rm 3.10; 8.7-8; Ef 2.3). Ele é o centro da existência humana e do relacionamento com Deus. Do coração do homem procedem as fontes da vida (Pv 4.23), isto é, tudo na vida depende e é também resultado deste posicionamento religioso do coração em submissão ou em rebeldia contra Deus.
Pressuposição da filosofia calvinista: só o cristianismo dá sentido ao mundo

Ninguém, segundo a filosofia reformada, pode prestar contas de coisa alguma em si mesmo ou no mundo exceto se fundamentado na revelação.(25) Desse ponto de vista, é absolutamente irracional defender qualquer outra postura que não seja a da fé cristã. Somente o cristianismo não sacrifica a razão no altar da deusa contingência.(26) A filosofia reformada é, portanto, pressuposional: ela sustenta que a única "prova" da posição cristã é que, a não ser que ela seja pressuposta como verdade, não é possível provar coisa alguma.(27) Pela graça comum, todavia, os incrédulos têm chegado a descobertas espantosas. Só que, segundo a filosofia calvinista, o não-cristão não tem nenhum direito sobre qualquer destas verdades, que Van Til chama de "capital emprestado".(28) Todas as verdades sobre o cosmos pertencem àqueles que reconhecem o cosmos e suas leis como criação de Deus. Até mesmo conceitos filosóficos de origem não cristã podem ser utilizados pela filosofia cristã reformada, uma vez que eles, quando verdadeiros, pertencem de direito ao cristão, que tem a obrigação de resgatar e purificar a verdade, e trazê-la à obediência de Cristo (2 Co 10.3-5). Esse processo é oposto ao processo de síntese comumente utilizado por filósofos cristãos (ex.: Tomas de Aquino, Paul Tillich) que realizam o processo inverso através de uma adaptação forçada do pensamento cristão ao pensamento apóstata.

Palingênese: a restauração integral em Cristo (29)

Orientado pela revelação, o cristão pode interpretar o mundo corretamente, ainda que não exaustivamente. O cristão pode e deve explorar o cosmos criado, bem como suas próprias capacidades intelectivas. Essa atividade é, na verdade, um mandato bíblico (Gn 1.28). Na verdade, só o cristão, graças ao processo palingenético, genuinamente pode, quer, e sabe fazê-lo, no poder do Espírito (Cl 3.10).(30) O pensamento não-cristão põe-se em rebeldia contra o Criador, e afirma a autonomia da razão humana, a qual passa a ser o tribunal supremo da verdade. Mas a pretensa razão autônoma não é realmente livre. Ela é a razão escravizada pelo pecado que carrega o ser humano inevitavelmente para a escravidão da idolatria. Somente a ação redentora do Espírito de Deus pode tornar o homem livre da escravidão do pecado para a obediência de Cristo. E assim libertado, o cristão recupera a capacidade de explorar de forma proveitosa a criação de Deus, pois agora ele compreende que de Deus, por Deus, e para Deus são todas as coisas (Rm 11.36; cf. At 17.28).

Fica claro que um obstáculo para a filosofia reformada é o biblicismo.(31) O pensamento biblicista é uma distorção da doutrina calvinista da Palavra de Deus. A filosofia calvinista se fundamenta na Bíblia e se responsabiliza por permanecer sempre biblicamente orientada. Mas se a Bíblia é compreendida como a única fonte de conhecimento seguro para o cristão, e exclue-se a possibilidade de investigar-se o cosmos criado através da iluminação do Espírito, então de fato as portas se fecham para a investigação científica e filosófica, o que é sem dúvida uma tragédia. O biblicismo é, entretanto, uma distorção que não representa fidedignamente o pensamento calvinista. Para Calvino, a revelação especial de Deus são as lentes que nos permitem compreender a criação como o próprio Deus a compreende. Ao colocarmos as lentes da Escritura em frente aos nossos olhos somos capazes, pela primeira vez, de enxergar a criação de Deus de modo apropriado.

Calvino compreendeu os efeitos radicais da queda, inclusive o efeito noético do pecado, que tornou a razão humana incapaz de chegar ao conhecimento da verdade por si mesma (Tt 1.15). E uma vez que a queda é primordialmente uma tragédia ética, a desobediência é a característica de tudo o que fazemos, dizemos ou pensamos. Mas Calvino também compreendeu o sentido radical da redenção em Cristo, que restaura o homem palingeneticamente, em todos os aspectos do seu ser.(32) A investigação do cosmos criado e da revelação geral de Deus é, todavia, executada segundo os pressupostos bíblicos explicitados teoricamente pela filosofia reformada. O pensador calvinista não principia em um "fato" supostamente neutro. Segundo Van Til, o que o não-cristão entende pela existência de um "fato", é a sua existência independentemente de Deus.(33) O "ser" é a noção transcendental por excelência do pensamento não-cristão (e de formas inconsistentes do cristianismo). Mas o "ser" e a "existência", segundo a filosofia reformada, não podem sequer ser discutidos sem que seja considerada a pressuposição ainda mais fundamental da existência ou do "ser" de Deus. Todas as coisas são inexplicáveis se não fôr pressuposto o Deus da Escritura.(34)
Defesa da fé: Uma filosofia reformada implica em uma apologética reformada

Paralela à insatisfação reformada com as chamadas filosofias cristãs, desenvolveu-se paulatinamente uma insatisfação semelhante com os métodos apologéticos empregados pelos defensores da nossa fé. O surgimento de uma filosofia reformada implica em uma revolução na nossa apologética. Coube a Van Til desenvolver um sistema apologético que ele considerou genuinamente reformado. Van Til chamou seu método de "pressuposicional", e seu lema é o de Anselmo: credo ut intelligam (eu creio para que eu possa compreender). O método pressuposicional de Van Til opõe-se radicalmente ao método tradicional evidencialista-racionalista, que sugere exatamente o oposto: "eu creio porque eu compreendo".(35) A apologética tradicional acredita na habilidade e confiabilidade da razão humana, e procura fundamentar a fé em argumentos racionais e empíricos. O método tradicional, portanto, não leva devidamente em consideração os efeitos radicais da queda. O método pressuposicional sustenta que a fé em Deus precede o entendimento de qualquer coisa, e que a elucidação teórica da verdade é subseqüente à fé; e que a corrupção total do homem foi a causa da razão humana se tornar incapaz de ancorar-se, autonomamente, e de modo satisfatório, em algo objetivamente indubitável. A ação regeneradora do Espírito é conditio sine qua non tanto para o despertar da fé quanto para a iluminação intelectual genuína que, radicada na fé em Deus, pode chegar à interpretação correta dos fatos. Analisaremos em seguida os três princípios elementares da nova apologética reformada.

Pensamento pressuposicional: Deus como pressuposto filosófico

A apologética é a justificação da nossa esperança, a qual somos chamados a apresentar àqueles que nos indagam (1 Pe 3.15). É, segundo Van Til, "a defesa da filosofia de vida cristã contra as várias formas da filosofia de vida não-cristã".(36) O mandato escriturístico é bastante claro, mas resta saber qual é a melhor metodologia para executá-lo. A apologética tradicional principia no esforço de provar a existência de Deus. Alguns apologistas buscam demonstrar a existência de Deus através de argumentos lógicos, e alguns apresentam evidências históricas. A apologética reformada é chamada "pressuposicional" porque ela não procura provar a existência de Deus, mas antes a pressupõe. Ela ainda pressupõe que todas as pessoas já sabem de antemão que Deus existe, mesmo que afirmem o contrário (Rm 1.18-20). Além disso, a apologética reformada não pressupõe um deus, ou melhor ainda, a possibilidade da existência de um deus. A apologética reformada não se satisfaz senão com o pressuposto do trino Deus das Escrituras, e este não existe possivelmente, mas certamente é! Deus é ontologica e racionalmente necessário!(37) Para o apologista tomista, a possibilidade torna-se a origem de Deus; mas para o apologista reformado, Deus é a origem de toda e qualquer possibilidade. A apologética reformada, portanto, em vez de tentar provar a existência de Deus por meios racionalistas e empiricistas, pressupõe a existência de Deus desde o princípio. E isso não é embaraçoso, porque os incrédulos também baseiam a sua incredulidade em alguma espécie de autoridade não-confirmável. Ambos, cristãos e não-cristãos, possuem pressuposições. Os chamados bruta facta (fatos brutos, nus e crus) não existem. Tudo que "existe" já existe interpretado, hermeneuticizado pelo homem segundo pressupostos previamente estabelecidos. A neutralidade do pensamento é uma utopia que nem é possível nem desejável, pois almejá-la é iludir-se e submeter-se invariavelmente, consciente ou inconscientemente, sob a égide de um conjunto específico de pressuposições.
O efeito noético do pecado: a corrupção da razão

A apologética reformada entende que a corrupção do pecado estende-se a todas as áreas da vida do homem, inclusive a seus pensamentos e atitudes, sua razão, suas emoções, sua vontade. É somente pela graça de Deus, através da regeneração pelo novo nascimento em Cristo, que o ser humano pode, pelo poder do Espírito, renovar a sua mente, e adquirir a capacidade de repensar os pensamentos de Deus, e de entender o mundo conforme a interpretação dada por Deus em sua revelação. A apologética reformada não minimiza a lógica (mas também não a eleva acima de Deus, que a criou) nem as evidências, mas ela as incorpora em um esquema de compromissos básicos (pressuposições) no qual elas passam a fazer sentido.(38) O pensamento não-cristão (bem como o pensamento cristão inconsistente) não possue um legítimo ponto de transcendência, e acaba por permanecer preso dentro dos confins do cosmos criado. A apologética reformada afirma a finitude e a pecaminosidade do homem, e a incapacidade humana de compreender o universo. Mas ela também apresenta Deus como o Criador. Só um mundo que tem sua interpretação definida pelo Deus vivo faz sentido (Jó 38.4).(39)

Ponto-de-contato: a religiosidade inerente ao homem

A apologética reformada baseia-se no fato de que todos os homens intuem Deus (sensus divinitatis). O homem rejeita seu conhecimento de Deus e o nega. Quando apresentamos o evangelho aos incrédulos, estamos-lhes comunicando aquilo que eles em grande parte já sabem, mas tentam ignorar e suprimir (Rm 1.18-25).(40) Este é, segundo a apologética reformada, o nosso único ponto de contato (Anknüpfungspunkt) com os incrédulos. Eis porque são vãos os apelos da apologética tradicional às "noções comuns" a cristãos e não-cristãos, e à neutralidade da razão. Contrário ao que diz a apologética clássica, a racionalidade humana não serve como ponto-de-contato.(41) Não há acordo entre cristão e não-cristão em nenhuma área do conhecimento humano, em nenhum aspecto de sua biocosmovisão.(42) A apologética pressuposicional ataca, portanto, o coração do incrédulo, e consequentemente o coração da questão. Pensamento e fé são funções do ser humano que operam unidas movendo-se em direção à obediência a Deus ou à apostasia. A apologética calvinista busca, portanto, expôr os pressupostos básicos que controlam o pensamento e a vida das pessoas. Isso envolve identificar e desmascarar os motivos que direcionam as tendências por trás do estilo-de-vida de um indivíduo, de uma família ou de toda uma sociedade. Eis porque a apologética e a filosofia reformadas formam a base necessária e convidam o pensador cristão para se engajar na formação de uma psicologia reformada, uma sociologia reformada, uma antropologia reformada, e assim por diante. Assim como a filosofia reformada é antitética e bíblica, assim também devem ser as ciências sob o ponto-de-vista calvinista. A filosofia reformada forma a sustentação teorética necessária para o levantamento destes edifícios científicos. Fica claro, portanto, que não estamos propondo a criação de glossas e apêndices, mas sim uma verdadeira revolução na história do pensamento cristão, para maior glória do nome de Cristo.
Conclusão

Neste ensaio procuramos em breves palavras apresentar ao pensador reformado brasileiro os fundamentos da filosofia e da apologética reformadas. Só Deus sabe os efeitos que tal empreendimento pode promover na igreja de Cristo. Só podemos adiantar que são efeitos revolucionários, transformadores, e verdadeiramente significativos para a teologia, a prática eclesiástica, e a vida cristã de cada irmão em Cristo. Nossa esperança é que o pensamento reformado se agigante em nossa pátria, e que possa ter sobre nossa terra e nosso povo um efeito salvador e restaurador, em particular na cultura e na política brasileiras. Nossa proposta é que o brasileiro calvinista abrace uma biocosmovisão completamente calvinista, para que possamos de fato, e coerentemente, reclamar o Brasil para Cristo, em todas as áreas da vida, da cultura, e do pensamento. Na minha opinião, O calvinismo é a mais perfeita apresentação da fé cristã. Como disse B. B. Warfield, "o calvinismo é o cristianismo que se achou".(43) Se pregarmos a fé reformada segundo os princípios básicos da biocosmovisão calvinista, estaremos pregando a fé cristã em sua mais perfeita expressão, e estaremos portanto, servindo a causa de Jesus Cristo da melhor maneira possível.

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Notas

1 Para definições desses e de outros conceitos filosóficos mencionados no presente artigo, ver Estêvão Cruz, Compêndio de Filosofia (Porto Alegre: Globo, 1932); Theobaldo Miranda Santos, Manual de Filosofia: Introdução, Filosofia Geral, História da Filosofia, e Dicionário de Filosofia (São Paulo: Nacional, 1966; 14a. ed.); Norman L. Geisler e Paul D. Feinberg, Introdução à Filosofia (São Paulo: Vida Nova, 1989).
2 Cf. Robert D. Knudsen, Calvinistic Philosophy (obra não publicada) 4.
3 A corrupção total do homem causada pela queda é um dos cinco fundamentos do calvinismo. Os outros quatro são: eleição incondicional, expiação limitada, graça irresistível, e a perseverança dos santos. São estes cinco fundamentos que distinguem a teologia reformada de outras formas de teologia cristã que são, do ponto de vista calvinista, inerentemente inconsistentes.
4 Citado em Knudsen, Calvinistic Philosophy, 4. Karl Barth, seguindo Kierkegaard, também chegou à mesma conclusão de Gilson, chamando até mesmo o conceito de "filosofia cristã" de um conceito bastardo. No seu pensamento, o caminho da filosofia e do cristianismo se opõem como os caminhos respectivamente da imanência e da transcendência paradoxal. Para Barth, assim como para Kierkegaard, a fé é irracional, um salto no escuro, e fundamentalmente subjetiva. Veja Cornelius Van Til, The New Modernism (Philadelphia: Presbyterian and Reformed, 1947); e G. C. Berkouwer, The Triumph of Grace in the Theology of Karl Barth (Grand Rapids: Eerdmans, 1956).
5 A obra-prima de Herman Bavinck, Philosophy of Revelation (Grand Rapids: Baker, 1979; 1a. edição - 1909), foi uma resposta a Gilson. Veja William White Jr., Van Til: Defender of the Faith (Nashville: Thomas Nelson, 1979), 225.
6 H. G. Stoker, "The Possibility of a Calvinistic Philosophy" em The Evangelical Quarterly 7 (1935) 22.
7 Joel R. Beeke, "Cornelius Van Til and Reformed Apologetics" em Reformed Herald 51 (1995), 7. Veja Herman Dooyeweerd, A New Critique of Theoretical Thought (Jordan Station: Paideia, 1984); e L. Kalsbeek, Contours of a Christian Philosophy (Toronto: Wedge, 1975).
8 Plurívoco refere-se àquilo que tem sentido múltiplo, que é passível de ser interpretado de formas diferentes. Posiciona-se, em tese, contra aquilo que é unívoco, que tem sentido único, uma só interpretação possível.
9 Jacques Derrida, nascido em 1930, é filósofo francês e crítico literário. Ele é professor da Ecole Normale Superieure em Paris. Suas teorias, conhecidas como pós-estruturalismo e deconstrucionismo, embora relativamente desconhecidas no Brasil, são largamente influentes nos Estados Unidos e na Europa. Em contraste ao estruturalismo de Fernand de Saussure e seus seguidores, Derrida mantém que o sentido da linguagem é elusivo e oculto, e que nenhuma interpretação definitiva pode ser estabelecida. Seu método crítico consiste em "deconstruir" um texto pela exposição das pressuposições lingüísticas e filosóficas ocultas no mesmo (Nota do Editor).
10 A nobre exceção é Francis Schaeffer, cuja obra de alcance mundial chegou também à mão dos brasileiros, infelizmente em traduções irregulares. O mestre de L'Abri nunca pretendeu fazer filosofia cristã a nível acadêmico. Schaeffer, todavia, prestou ao mundo cristão o inestimável trabalho de popularizar a apologética Reformada pressuposicional através de sua imaginativa obra. Veja The Complete Works of Francis Schaeffer 5 vols. (Wheaton: Crossway, 1982). Nem todos estudiosos, entretanto, entendem que Schaeffer era um pressuposicionalista coerente. Ver, por exemplo, o artigo de William Edgar, "Two Christian Warriors: Cornelius Van Til and Francis Schaeffer Compared", em Westminster Theological Journal 57/1 (1995) 57-80.
11 Knudsen, Calvinistic Philosophy, 10-17. Veja Abraham Kuyper, Lectures on Calvinism (Grand Rapids: Eerdmans, 1931).
12 Veja Cornelius Van Til, "Bavinck the Theologian" em Westminster Theological Journal 27 (1961) 1.
13 Veja David Hugh Freeman, Recent Studies in Philosophy and Theology (Philadelphia: Presbyterian and Reformed, 1962); e Vincent Brümmer, Transcendental Criticism and Christian Philosophy (Franeker: T. Wever, 1961).
14 Veja John H. Kok, Vollenhoven (Sioux Center: Dordt College Press, 1992).
15 Veja Knudsen, Calvinistic Philosophy, 70-75.
16 Muitos outros ilustres pensadores calvinistas poderiam figurar em uma lista mais detalhada: J. Woltjer, J. M. Spier, J. P. A. Mekkes, S. U. Zuidema, K. J. Popma, Hendrik van Riessen, Pierre Charles Marcel, Robert D. Knudsen, K. Scott Oliphint, John Frame, William Edgar, Vern S. Poythress, David A. Powlison, Rousas Rushdoony, Greg Bahnsen, Hendrik Hart, James Olthuis, Calvin Seerveld, Bernard Zilstra, H. Evan Runner, entre muitos outros. Ainda que os filósofos reformados estejam hoje espalhados por todo o globo, algumas escolas de pós-graduação destacam-se por sustentar, ao menos em parte, a filosofia calvinista, como por exemplo a Vrije Universiteit de Amsterdam, o Westminster Theological Seminary de Philadelphia, o Calvin College e o Calvin Theological Seminary de Grand Rapids, e o Institute for Christian Studies de Toronto.
17 Os reformadores e seus sucessores obtiveram grandes conquistas na área teológica, mas foi somente através da pena de Abraham Kuyper que os calvinistas puderam encontrar uma filosofia reformada que proporcionasse uma completa biocosmovisão (Weltanschauung) perfeitamente coerente com o pensamento calvinista. Entre as obras de Kuyper, há duas que apresentam de forma mais distinta a gênese da filosofia reformada: Lectures on Calvinism, 9-40; e Encyclopedia of Sacred Theology (New York: Scribner's, 1898), 56-227.
18 Dooyeweerd sugeriu que há quatro motivos elementares nos quais se fundamentam todas as diferentes escolas da história da filosofia. Três deles são apóstatas: o esquema dualista matéria-forma da filosofia grega, o esquema da síntese medieval natureza-graça, e o esquema moderno natureza-liberdade. Em oposição a todos estes, há o esquema cristão radicalmente bíblico criação-queda-redenção. É somente sobre este último motivo elementar que o edifício da filosofia cristã genuína poderá ser erguido.
19 Beeke, "Cornelius Van Til and Reformed Apologetics", 6.
20 Robert D. Knudsen, "The Legacy of Cornelius Van Til" em New Horizons 16 (1995), 3.
21 Há duas realidades: a) Deus e b) tudo o mais; e no princípio só havia Deus. Cf. Thomas E. Tyson, "The Two Circles" em New Horizons 16 (1995), 4.
22 Veja Cornelius Van Til, The Defense of the Faith (Phillipsburg: Presbyterian and Reformed, 1967), 31-50.
23 Dooyeweerd criou o nome peculiar de "princípio cosmonômico", ou ainda "idéia-lei", para a revelação de Deus enquanto esta executa a função de fronteira entre Deus e o cosmos criado. Os conceitos dooyeweerdianos receberam críticas e aplausos por parte de outros filósofos calvinistas. Veja sua obra A New Critique of Theoretical Thought; e L. Kalsbeek, Contours of a Christian Philosophy.
24 É de Calvino a expressão "Deus ex lex est", cf. Knudsen, Calvinistic Philosophy, 8-9.
25 Scott Oliphint, Cornelius Van Til and the Reformation of Christian Apologetics (Scarsdale: Westminster Discount Book Service), 5.
26 White Jr., Van Til: Defender of the Faith, 199.
27 Ibid.
28 Oliphint, Cornelius Van Til and the Reformation of Christian Apologetics, 25.
29 "Palingênese" significa "uma mudança brusca". Para o emprego do termo na linguagem filosófica reformada ver a nota 32 (Nota do Editor).
30 "Há dois tipos de pessoas, e ambos se propõem a ser os intérpretes da raça humana na sua normalidade, e . . . não podem abandonar a pretensão de que só o resultado de sua investigação científica leva ao conhecimento do objeto. . . . A diferença entre estes dois grupos pode ser brevemente descrita pela palavra `palingênese'". Abraham Kuyper, Encyclopedia of Sacred Theology, 219.
31 Cf. Knudsen, Calvinistic Philosophy, 5-6. Biblicismo é a teoria epistemológica cristã que sugere que só a Bíblia pode fornecer ao homem um conhecimento verdadeiro sobre qualquer coisa. A Bíblia torna-se a única fonte, não apenas do conhecimento de Deus, de sua relação com o homem, e de conhecimento teológico, mas também de conhecimento científico e filosófico. O biblicismo vai um passo além da doutrina da inerrância, pois enquanto esta afirma ser a Bíblia destituída de erro, o biblicismo afirma ser a Bíblia a única fonte de conhecimento confiável. Trata-se de uma absolutização que não tem fundamento nem na própria Bíblia, e de uma distorção do ensino de Calvino, que nunca negou o valor da pesquisa científica empírica, e julgava valioso o conhecimento proveniente dos estudos humanistas da literatura grego-romana clássica.
32 A. Kuyper sugere que a regeneração em Cristo, segundo os princípios calvinistas, só pode ser compreendida como uma palingênese, isto é, como um recomeço amplo, geral, e irrestrito, que afeta todas as áreas do homem e de todo o cosmos criado.
33 Cornelius Van Til, Survey of Christian Epistemology (Nutley: Presbyterian and Reformed, 1977), 117.
34 Oliphint, Cornelius Van Til and the Reformation of Christian Apologetics, 6.
35 A apologética reformada de Van Til opõe-se também a sistemas apologéticos não-racionais (por exemplo, o barthianismo) cujo lema poderia ser o credo quia absurdum (creio porque é absurdo) de Tertuliano.
36 Cornelius Van Til, Christian Apologetics (Phillipsburg: Presbyterian and Reformed, 1976), 1.
37 White Jr., Van Til: Defender of the Faith, 195.
38 William Edgar, "Why I Am a Presuppositionalist" em New Horizons 16 (1995), 7.
39 Ibid.
40 White Jr., Van Til: Defender of the Faith, 199.
41 Oliphint, Cornelius Van Til and the Reformation of Christian Apologetics, 7.
42 Abraham Kuyper, Encyclopedia of Sacred Theology, 225.
43 Oliphint, Cornelius Van Til and the Reformation of Christian Apologetics, 29. 
Fonte: monergismo.com

Entrevista

LUIZ CARLOS TRAVAGLIA

OS AVANÇOS NOS ESTUDOS DA LÍNGUA FALADA

Por Artarxerxes Modesto
Professor do Instituto de Letras e Lingüística da  Universidade Federal de Uberlândia, Luiz Carlos Travaglia, lingüista respeitado em todo o meio acadêmico, fala sobre os avanços nos estudos da língua falada, e discute sobre a prática do professor de língua materna em sala de aula.

Letra Magna: Na sua opinião, quais os principais avanços que a Lingüística moderna trouxe para o estudo da língua em sua modalidade falada?

TRAVAGLIA: Na verdade a Lingüística que poderíamos chamar de tradicional e de cujo trabalho e estudos resultaram as chamadas gramáticas tradicionais, não se interessou muito pela língua falada. Como conseqüência não se desenvolveram métodos ou modelos para o estudo da  língua falada. Mesmo a Lingüística moderna, fundada a partir de Estruturalismo e em grande parte continuada pelo Gerativismo, também não trabalhou muito com a língua falada, pois estava mais interessada no sistema lingüístico (langue para Saussure, competência para Chomsky). Às vezes essas teorias ou modelos analíticos usavam ocorrências da língua falada como material para chegar ao sistema lingüístico, mas não buscavam uma descrição da língua falada enquanto tal em oposição e comparação contrastiva com a língua escrita. O interesse por uma descrição específica da língua falada só surgiu nas últimas décadas. Parece-me que os primeiros trabalhos se devem à Sociolingüística Variacionista. No Brasil, a partir da década de 1970.  O que a Lingüística trouxe foram teorias e modelos analíticos diversos que tanto podem ser usados no trabalho com a língua escrita, quanto com a língua falada. Quando participei do Projeto de Gramática do Português Falado (PGPF) que se iniciou em 1987 e se estendeu por um pouco mais de uma década (Os volumes da gramática de referência devem sair a partir desse ano, mas os estudos pararam, se não me engano, em 1998), o que tínhamos não era um modelo teórico novo para a língua falada, mas a aplicação à mesma de modelos já existentes de análise. Tínhamos uma média de cinqüenta pesquisadores desenvolvendo um ou mais estudos por ano e cada um utilizava os modelos em que sua formação o tornara mais capacitado, o modelo em que ele se especializara. Certamente se tratou da fonologia, da morfologia, da sintaxe e dos textos da língua segundo diversos modelos teórico-analíticos. Todavia o que se observou foi que a Lingüística teve de aprender a trabalhar com a língua falada da qual antes não tratava. Para isto certamente tem vencido desafios que surgem a todo instante. Assim a Lingüística teve de desenvolver métodos e técnicas para:
a)      a coleta de material de língua falada, o que de modo algum é simples porque, a não ser que se façam gravações secretas, nem sempre se tem a língua falada em sua naturalidade de uso no dia-a-dia dos usuários da língua. As entrevistas, diálogos entre informantes e documentadores e sua gravação, a gravação de aulas, entrevistas, debates, conversas telefônicas, etc. tem de ser feita com muito cuidado para não falsear o material que posteriormente será objeto de análise;
b)      a transcrição do material gravado, pois já se aprendeu hoje que a transcrição pode já ser direcionada pelo objetivo do pesquisador e nem sempre deixar perceber certos fatos que são próprios da língua falada, ou mesmo criar um dado viés na sua observação;
c)      registrar não só o sonoro da língua falada, mas a situação, o entorno e elementos paralingüísticos como gestos e expressões fisionômicas que na língua falada podem desempenhar papel fundamental, inclusive na comunicação de conteúdos.

Creio, dessa forma, que a contribuição da Lingüística para o estudo da língua falada foi o desenvolvimento dos mais diferentes modelos analíticos, capazes de permitir a percepção de fatos relativos à constituição da língua e seu funcionamento tanto na modalidade escrita quanto na falada e, mais especificamente, o desenvolvimento de métodos e técnicas para preparar o material da língua falada de modo a permitir a sua fixação para o seu posterior estudo.


Letra Magna: Qual a sua posição diante da grade curricular dos cursos de Letras no Brasil? O senhor concorda que deveria haver uma maior ênfase na Lingüística?

TRAVAGLIA: Vocês estão me fazendo uma pergunta difícil de responder, sobretudo porque os currículos não são uniformes e nem os cursos são idênticos em seus objetivos. Considerem as licenciaturas simples e duplas, os bacharelados, se o curso é de Lingüística, ou de Língua Portuguesa, ou de língua estrangeira. E assim por diante. Não tenho notícia de  um curso de graduação da área de Letras e Lingüística que dê formação apenas em  teoria literária e literatura (de Língua Portuguesa ou de língua estrangeira). Assim a ênfase ou não na Lingüística pode depender até mesmo da área em que o curso se concentra. Todavia parece não haver dúvidas de que a Lingüística merece um destaque especial em qualquer curso cujo objetivo seja a formação de bacharéis ou licenciados em Língua Portuguesa, Língua Estrangeira e Lingüística.  Não creio que alguém possa ser um bom profissional ao trabalhar com línguas sem um bom conhecimento das descobertas da Lingüística e, conforme o caso, como nas licenciaturas, também  da Lingüística Aplicada. Primeiro é preciso um conhecimento básico das teorias e modelos analíticos e em segundo lugar o conhecimento das descrições e explicações que os estudos lingüísticos colocam à disposição sobre todos os planos e níveis da língua com que se trabalha, seja a Língua Portuguesa, seja uma língua estrangeira. Além disso creio que os cursos precisam não só passar informação, mas também ensinar a raciocinar, a pensar, a fazer ciência e isto deve ser aprendido nos estudos lingüísticos. Não importa o nome da disciplina (Língua Portuguesa, Lingüística, Sintaxe, Morfologia do Português/outra língua, Semântica, Estilística, Lingüística Textual, Análise do Discurso, da Conversação, Sociolingüística, etc), o estudante de um curso de Letras tem que estudar sobre o resultado dos estudos lingüísticos (a gramática descritiva) tanto o que foi descoberto pelos Estudos Lingüísticos tradicionais, quanto o que foi e está sendo descoberto pelas teorias e modelos lingüísticos do início do século XX para cá (Será que podemos falar em Lingüística Moderna com já quase um século de existência?). Creio que neste caso falar em ênfase na Lingüística é pressupor ou acreditar que se possa trabalhar com as línguas sem os Estudos Lingüísticos, recebam eles que nome receberem. Não sei se a comparação é boa, mas parece-me que é perguntar se dá para existir chuva, rio, lago ou mar sem existir água. Quanto aos currículos, creio que todos têm procurado fazer o melhor, mas creio que mais do que a grade de disciplinas e seu fluxograma, o mais importante para a formação dos profissionais da área de Letras e Lingüística (como em qualquer área) é o que professores e alunos fazem durante o curso, como trabalham, como buscam, como cultivam ou não um espírito científico no tratamento das questões todas.

Letra Magna: Temos observado, nos últimos anos, um avanço significativo nos estudos da língua falada. Análise do Discurso, da Conversação, Sociolingüística, Pragmática, Gramática Gerativa, entre outras disciplinas surgiram como grandes ferramentas que nos permitem entender melhor nossa língua. Para o senhor qual seria o método mais eficiente de realizar uma análise da língua falada?

TRAVAGLIA: Vocês têm razão ao registrar um avanço significativo no estudo da língua falada. Mas, como já disse antes, não me parece que algum modelo teórico, salvo talvez a análise da conversação e certos aspectos dos estudos fonéticos e fonológicos, tenha surgido especificamente para trabalhar com a língua falada. Mesmo a análise da conversação não se debruça sobre o como a língua é e como funciona, mas sim sobre como a conversação se estrutura com organizadores globais e locais. Já disse anteriormente que não há, até onde posso perceber,  modelos teóricos específicos para o estudo da língua falada. Todavia é preciso: a) ter alguns cuidados metodológicos para coleta do material, sua transcrição e sua posterior análise, usando um ou mais dos vários modelos teóricos com o devido cuidado para evitar reducionismos; b) evitar estudar o falado com o olhar de quem se acostumou a estudar o escrito, ou vendo a fala como um arremedo da escrita e sobretudo, na análise; c) evitar qualquer viés que possa perturbar a visão mais clara e sem preconceitos do material sob estudo. São estas, em minha opinião, as condições importantes para tornar eficiente o modelo e/ou método escolhido para análise da língua falada.

Letra Magna: Grande parte das áreas mencionadas acima sofreram  - e ainda sofrem – inúmeras críticas, seja pela falta de um modelo teórico consistente, seja pela dificuldade de aplicação da teoria.  Sendo assim, como o pesquisador deve agir diante do fenômeno lingüístico?

TRAVAGLIA:  Com humildade e com a maior seriedade científica possível e sem preconceitos teóricos em relação a teorias e modelos analíticos. Se formos sinceros, teremos de admitir que todo e qualquer modelo teórico apresenta problemas, é capaz de ser muito útil para percepção e análise de certos fatos ou fenômenos lingüísticos, mas inadequado para trabalhar com outros ou até mesmo permitir perceber a sua existência. Qualquer modelo teórico, para mim, tem alguma consistência ou não seria visto como um modelo teórico e analítico. A inconsistência surge, para todos os modelos teóricos, quando queremos trabalhar fenômenos que escapam ao seu escopo, à sua capacidade de atuar como instrumental para estudar dado fato ou fenômeno. A Teoria do Discurso foi capaz de nos mostrar fatos sobre a construção e funcionamento dos recursos / regularidades lingüísticas como instrumentos de significação que uma Semântica Formal de base estrutural nunca permitiu perceber, analisar. Isto não quer dizer que as análises sêmicas, por exemplo, não nos ensinaram coisas importantes sobre o significado e a significação das palavras, por exemplo ou que a Semântica Gerativa não nos mostrou fatos importantes sobre a significação das frases, quando tratou, por exemplo, da questão da ambigüidade, mas é pela evolução das idéias que surgiu uma Teoria do Discurso, uma Semântica Argumentativa, por exemplo, que pemitem trabalhar aspectos da significação antes não observados. Esses modelos teóricos nos mostram fatos reais da língua, mas isto não quer dizer que o que os anteriores mostraram não tenha validade. Apenas se percebe que determinado modelo não podia tratar de certos fatos. Essa constatação da existência de fatos e fenômenos que o modelo não consegue explicar é que o faz parecer inconsistente, e conseqüentemente ser modificado ou levar à proposição de novos modelos para dar conta dos fatos e fenômenos com os quais não nos preocupávamos antes, até mesmo porque não éramos capazes de perceber sua existência. Acho que essa deve ser a postura do pesquisador perante o fenômeno lingüístico: a de abertura para sua percepção, a aceitação de que modelos teóricos evoluem, podem eventualmente ser descartados, são capazes ou não de explicar dados fatos e/ou fenômenos, e, o que é realmente importante, a atitude de sempre buscar tal explicação, inclusive com o auxílio de mais de um modelo teórico, coisa que muitos abominam, em minha opinião, provavelmente por preconceito. O que importa não é defender um modelo como uma relíquia intocável, mas ser capaz de fazer o conhecimento progredir, dentro de certos parâmetros de qualidade e de controle do trabalho científico, para não cairmos no devaneio descontrolado e perigoso. A ciência precisa evoluir e ganhar significação social e  não se encastelar em fortalezas inexpugnáveis, pertencentes a feudos e seus senhores.

Letra Magna: Passando agora para a sala de aula, como senhor acha que deve ser a postura do professor de língua materna diante do vernáculo do aluno? Devemos ensinar a Gramática Normativa?

TRAVAGLIA: Tenho falado muito sobre ensino de língua materna e no que respeita ao trabalho com variedades lingüísticas tenho proposto que o professor trabalhe com uma variedade lingüística contemporânea, local quanto ao dialeto regional, mas mostrando que existem variedades regionais distintas até mesmo para evitar preconceitos. O mesmo vale para os dialetos sociais, históricos e os de idade. Parece-me que não precisamos ensinar a meninos e meninas variedades de sexo ou de idade, porque todos se adaptam muito bem a tais variedades conforme as exigências sociais, mas pode-se fazer notar a existência dessas variedades. Quanto aos registros é preciso mostrar, pelo menos, que há graus diversos de formalidade, cortesia, tecnicidade. No que diz respeito à norma culta, acredito que ela deva ser ensinada, mais por razões políticas e sócio-culturais do que por razões propriamente lingüísticas. Tudo isto pode e deve ser feito com respeito ao que vocês chamam de “o vernáculo do aluno”. É preciso sim, ensinar a Gramática Normativa, mas é preciso fazê-lo não na visão de que só se pode usar a língua de um determinado modo, com o expurgo dos demais modos. Para mim a gramática normativa deve ser trabalhada com o aluno como uma espécie de regras sociais do uso da língua, uma espécie de “etiqueta” para o uso das diferentes variedades e seus recursos, pensando mais na adequação do como se diz aos efeitos de sentido pretendidos, aos objetivos que se quer alcançar com o dizer (falando ou escrevendo), e à situação específica de interação em que se está envolvido. Por isto importa muito ver o estudo da gramática da língua como o estudo das condições lingüísticas da significação. Isto resulta no desenvolvimento da competência comunicativa. Agora o que não se pode fazer é querer trabalhar a gramática normativa sem saber o que ela é. Digo isto, porque, em trabalho com colegas professores de todo o Brasil,  ouço com freqüência dizerem que estão dando gramática normativa quando ensinam análise sintática, classes de palavras e coisas que tais. Isto é gramática descritiva e não gramática normativa.

5a) Letra Magna: Sendo assim, o que seria a gramática normativa? Na sua
opinião, do que decorre esse desconhecimento por parte dos docentes?

TRAVAGLIA: A gramática normativa não diz quais são as unidades, construções, categorias de uma língua e nem explica como elas funcionam e nem analisa elementos da língua. Quem diz como a língua é constituída e como funciona é a gramática descritiva.  A gramática normativa é aquela que faz recomendações de como usar a língua. Tradicionalmente a gramática normativa atinha-se apenas a recomendar as formas e modos de dizer da norma culta. O que fugia da norma culta não podia ser usado, pois não tinha qualidade. Daí as recomendações em planos diversos tais como: a) não se deve pronunciar crisantêmo, corgo, muié, tauba, mas sim crisântemo, córrego, mulher e tábua; b) não se deve iniciar frases com pronome oblíquo átono; c) não se deve dizer "Eu vi ela", mas "Eu a vi"; d) o correto é dizer "Assistimos a um belo filme" e não "Assistimos um belo filme"; e) Não se diz "Que você seje feliz" ou "Vou ponhá o livro na estante", mas sim "Que você seja feliz" e "Vou pôr
o livro na estante". Essas recomendações tinham o objetivo de substituir usos que não eram considerados de norma culta por usos acatados pela norma culta. Atualmente há uma tendência em considerar a gramática normativa como um conjunto de regras sociais de como usar a língua, que volta sua atenção para que recursos e variedade(s) é mais adequado usar em dadas situações concretas de interação comunicativa para obtenção de um dado efeito de
sentido pretendido. Ou seja, hoje não restringimos a gramática normativa apenas ao uso da norma culta, porque sabe-se que mesmo que se use a norma culta o texto produzido pode não ser bom. O uso da norma culta (que, inclusive, não é algo uniforme, pois há uma norma culta falada outra escrita, há variedades cultas como a literária, a científica, a dos documentos oficiais, a dos jornais e revistas e assim por diante) não é o único parâmetro de qualidade no uso da língua. As normas vão dizer em que situações é socialmente recomendável usar a norma culta, mas também uma linguagem mais ou menos cortês, ou técnica, ou formal, de uma ou outra região, grupo social e assim por diante. É claro que o uso da norma culta
sempre receberá um destaque especial nestas normas sociais de uso da língua, por razões não propriamente lingüísticas, mas de prestígio social de natureza política, econômica e cultural, além de atender parâmetros de estética, comunicacionais, de tradição (o que leva a exigir, por exemplo, a concordância na voz passiva sintética que não existe mais no Português do Brasil atual), de nacionalidade (que leva a condenar estrangeirismos). Portanto como vocês podem ver a gramática normativa tem uma natureza prescritiva e tradicionalmente tinha também uma face proscritiva que não aceitava o uso de formas que não fossem da norma culta porque as considerava desvios, degenerações da língua. Hoje a prescrição tem um escopo mais amplo
e a proscrição não acontece pelo simples pertencimento de uma forma a uma dada variedade da língua. A gramática normativa hoje se reveste de uma maior consciência da existência de variedades da língua e de seu papel e pode propiciar uma diminuição de preconceitos lingüísticos, embora muitos achem que essa nova postura ainda esteja pouco difundida e verdadeiramente aceita. Portanto pode-se dizer que temos gramática normativa quando temos
recomendações do que se pode, deve ou tem que usar em dadas circunstâncias de comunicação ou tradicionalmente sempre que se tem o pode, deve ou tem que usar isto e não pode, não deve usar aquilo outro.     O desconhecimento do que seja efetivamente a gramática normativa, vem do fato de que as gramáticas tradicionais, muitas vezes chamadas de gramáticas normativas, sempre contiveram uma parte descritiva (sempre da variedade
escrita e culta) e uma parte normativa. Na parte descritiva se fazia, por exemplo, a classificação de unidades - como as classes de palavras, os tipos de morfemas-; construções e suas partes ou funções dos elementos dentro delas - como na análise sintática -; categorias da língua; figuras de linguagem, etc.). Na parte normativa apareciam regras e normas para bem usar a língua recomendando certos usos (os consagrados como da norma culta) e condenando outros (os considerados de norma popular ou não culta). A normatividade é explícita quando as gramáticas dizem use isto e não use aquilo, mas há também uma normatividade implícita, quando a gramática só registra o que ocorre na norma culta escrita, como por exemplo, quando diz que o presente do indicativo do verbo ser é "seja", sem registrar que em
algumas variedades aparece a forma "seje" e as pessoas dizem "Que você seje feliz", por exemplo. Devido a esta parte normativa e por vezes o título de gramática normativa, muita gente acha que tudo que há nesses livros é gramática normativa, inclusive a parte de descrição lingüística que neles aparece. Daí está formado o equívoco que se espalha, porque as pessoas não atentam para determinados aspectos daquilo que estudam. Eu não classificaria como um desconhecimento, parece-me mais um equívoco, causado pela desatenção às concepções básicas de gramática [a) o próprio mecanismo da língua: gramática internalizada; b) a tentativa de dizer como é este mecanismo: gramática descritiva; e c) as normas sociais para uso dos elementos da língua: gramática normativa] e aos tipos de gramática que temos. Espero que tenha ficado clara a diferença entre uma coisa e outra.

Letra Magna:  Muitas escolas estão abolindo a nomenclatura e os ensinamentos gramaticais tradicionais por um trabalho aprofundado baseado em textos. Inicialmente, pode parecer uma saída, mas, na prática, professores reclamam que o trabalho fica enfadonho e cansativo. Como resolver este embate?

TRAVAGLIA: Com muita criatividade, conhecimento e consciência do que está fazendo em sala de aula e para que está fazendo. Na verdade o estudo só de nomenclatura e ensino de teoria gramatical é improdutivo do ponto de vista da formação de usuários competentes da língua. O estudo apenas do uso pode gerar lacunas culturais, por falta de conhecimentos teóricos necessários socialmente ou como recurso de mediação didática, mas é preciso lembrar que em termos da população em geral não importa nem é necessário formar analistas da língua. Não creio que uma ou outra forma de agir em sala de aula seja enfadonha e cansativa em si. Creio que o problema advém de como se faz o trabalho, muitas vezes sem um conhecimento claro do que se está fazendo e porque se está fazendo daquele modo para conseguir o que. Fica difícil, em tão curto espaço, dizer como fazer, todavia creio que algumas grandes linhas podem ser lembradas: a) ninguém faz um trabalho interessante com aquilo que não conhece bem. Então o primeiro requisito é estudar bem, procurando o máximo de informação possível sobre o tópico que será objeto de trabalho em sala de aula para assim poder controlar aspectos sobre o que ensinar, em que ordem, como estabelecer uma progressão. Voltando à primeira pergunta essa é provavelmente a maior contribuição da Lingüística ao ensino: um conhecimento científico vasto, profundo e bem estruturado;  b) em segundo lugar é preciso lembrar que o trabalho em sala de aula depende de opções políticas, culturais, educacionais, pedagógicas, lingüísticas, etc. Assim é preciso decidir, por exemplo, com que variedades lingüísticas vamos trabalhar? Qual será nossa meta prioritária: formar usuários competentes da língua ou analistas da língua? Que tipo de ensino de língua vamos fazer: prescritivo, descritivo ou produtivo? Qual a concepção de língua e gramática que rege o nosso trabalho? Como vamos encarar a normatividade social quanto ao uso da língua e suas variedades? Com que categorias de texto (tipos, gêneros, etc.) vamos trabalhar? E assim por diante; c) em terceiro lugar é preciso observar onde nossos alunos estão e onde queremos fazê-los chegar, pois certamente será enfadonho “chover no molhado”, ficando naquilo que o aluno já sabe, ou exigir dele competências muito distanciadas do seu vernáculo. É preciso ir passo a passo para atingir o máximo possível; d) finalmente é preciso usar nossa boa vontade e criatividade para trabalhar do modo mais pertinente possível, mostrando ao aluno a necessidade para sua vida do que a escola lhe apresenta. Evidentemente isto não é tudo, mas é um bom começo. Talvez, se os colegas tiverem paciência, possam ler em meus livros e artigos algumas sugestões que faço para ajudar o professor a fazer um trabalho pertinente e mais motivador em sala de aula. A questão é complexa e exige muito de nossa boa vontade e  empenho para a execução da tarefa de fazer uma educação lingüística de qualidade e para a vida das pessoas.

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