segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Reflexões Sobre Educação, Ética e Cidadania a Partir do Pensamento Reformado

Osvaldo Henrique Hack Antônio
Máspoli de Araújo Gomes

Resumo: Existe uma profunda relação entre religião e ética, religião e educação, religião, educação e ética. A religião, através dos seus valores, fornece o substrato para o desenvolvimento da ética de um povo. A religião pode ainda estar na base da cosmovisão educacional de um grupo e finalmente, a educa­ção procura ser o instrumento de construção das atitudes éticas e morais de uma nação através do processo ensino-aprendizagem e da relação ensinante-aprendente. Partindo destes pressupostos, este trabalho busca compreender na história da educação reformada os princípios norteadores de uma educação, capaz de dar sustentação a formação integral do homem para a realização total do seu desenvolvimento como pessoa e cidadão que vive em comunidade em busca do bem comum.
Palavras-chave: Religião, Ética, Educação, Cidadania, Reforma Protestante, Ética Protestante e Filosofia Reformada.

A influência da Reforma do século XVI sobre a educa­ção é inegável. Este movimento religioso será um dos fatores importantes na ascensão de uma cultura escrita em função de algumas variáveis importantes. A Reforma vai definir a religião a partir de uma relação íntima e pessoal com Deus e esta comunhão com o sagrado se dará através do contato do cristão com os tex­tos da Bíblia elevada pela reforma protestante à catego­ria de revelação especial, a palavra de Deus (Anderson e Chanter, 1953). Lutero mesmo empenhou a sua vida na tradução da Bíblia para a língua alemã, a fim de colocar a Bíblia nas mãos do povo. Pouco ou nada adiantava colocar a Bíblia nas mãos de um povo analfabeto, mesmo com a vulgarização dos textos escritos pela invenção da imprensa (Brentano, 1968; Lessa, s.d).
Lutero, em sua obra A los magistrados de todas Ias ciudades alemanas, para que construyam y mantengam escuelas cristianas, datada de 1523, apresentava sua filosofia educacional na qual propu­nha que a educação deveria ter dois grandes objeti­vos: preparar as crianças para a leitura da Bíblia Sagrada e compreensão dos valores espirituais cris­tãos e adestrá-los para o exercício da cidadania pela participação consciente na comunidade e no governo civil. Cidadania entendida aqui como a submissão objetiva da consciência individual ao bem comum, as leis e as autoridades que respeitam as leis; e governo como aquele que busca o bem coletivo sob o primado das leis, a expressão derradeira e concreta dos valores cristãos, da sua ética e moral.
A educação reformada foi portadora de gran­des ideais. Um dos pioneiros da educação protestan­te foi João Sturm (1507-1589). Ele formulou e realizou em Estrasburgo, na Alemanha, um plano de ensino que compreendia três instituições diferentes: a família, o ginásio e a academia. Para ele, a educa­ção devia propor-se a três objetivos: a piedade, o saber e a eloqüência. Assim como na Alemanha, também na Suíça, na França, na Holanda e na Escó­cia, os reformadores foram precursores da moderna pedagogia, ou, pelo menos, grandes educadores. Citamos o exemplo de Calvino.
João Calvino, filho de Gerard Chauvin e Jeanne le Franc Chauvin, nasceu em Noyon, Picárdia, vinte e seis anos após o nascimento de Lutero, no dia 10 de julho de 1509. Seu progenitor era um próspero advogado, secretário do bispo, responsável pelos negócios da Igreja. Aos dezenove anos colou grau de Mestre de Artes no College de Montaigu, e doutorou­-se em direito em Orleans em 1531. Chegou a Genebra, Suíça, em 1536, onde assumiu o pastorado da Igreja Reformada naquele país. Publicou dezenas de livros, porém sua obra mais conhecida é As Institutas da Religião Cristã. João Calvino faleceu no dia 27 de maio de 1564.
Suas concepções educacionais foram espalha­das pela Holanda, Bélgica, Escócia, Inglaterra etc. e, tempos depois, nas colônias inglesas na América do Norte (Lessa, s.d.). Sua obra educativa foi importan­te. Criou numerosas escolas primárias e promoveu uma reforma moral dos cidadãos. Em 1539 fundou um colégio universitário chamado Academia, que deu origem a Universidade de Genebra, talvez sua melhor criação.
Outro fator determinante na construção dos princípios educacionais da Reforma foi a doutrina do Livre Exame. Esta doutrina baseia-se numa afirmação de Lutero segundo a qual todo homem é livre diante de Deus para ler e interpretar as sagradas Escrituras, tendo como mediador apenas a sua consciência e a ilu­minação do Espírito Santo de Deus. Esta concepção encontra-se na base da construção do moderno concei­to de consciência e responsabilidade individual posto que coloca o homem diante do transcendente como responsável direto por suas escolhas e seus atos.
A reforma protestante rompeu com as institui­ções escolásticas sobre a educação, posto que suas origens encontram-se no humanismo renascentista e deu um impulso decisivo para: a afirmação do princí­pio da instrução universal e laica. A partir do século XVII, alguns teóricos desenvolveram uma filosofia educacional protestante que desejavam adequar o espírito dos reformadores para o campo educativo. Com o objetivo de transformar esta filosofia numa prática, criaram procedimentos metodológicos capazes de fazer com que todas as crianças aprendessem.
O maior expoente da pedagogia protestante, contudo, foi Comenius, quando da publicação de sua Didática Magna: tratado da arte universal de ensinar tudo a todos. Comenius é considerado o fundador da Pedagogia enquanto área do conhecimento específico.
Imbuído do espírito protestante, e querendo efetuar uma verdadeira reforma no sistema escolar de seu tempo, Comenius propõe a regeneração dos cos­tumes, a organização de um cenário social da época. Pretendia-se pela escola, trabalhar aspectos atinentes à moralização da vida social, à civilização dos costu­mes, à racionalidade da vida pública e, até mesmo, à institucionalização de uma ética do trabalho. Sua pro­posta educativa era universal, pragmática e buscava a rapidez em todo o processo de ensino-aprendizagem, tomando esta tarefa um prazer para o mestre e para o aluno. Em síntese, Comenius procurava formar homens sábios, piedosos e prudentes. Em seu mode­lo educacional contemplava já naqueles tempos a pri­mazia da inteligência, memória e vontade, na formação dos homens.
Além do mais, a cosmovisão protestante cal­vinista impunha um modo particular de ver a realida­de educacional. Esta era considerada como uma necessidade premente para a própria sobrevivência desta cosmovisão. A fé reformada, sua liturgia, seus ritos e cultos estavam todos calcados na cultura de tradição escrita, na leitura e interpretação da Bíblia Sagrada e esta não prescindia da educação dos fiéis, A fé impulsionava o sistema pedagógico, o qual for necia os pilares para a sustentação daquela, numa perfeita simbiose legitimadora como prefigurou Berger no Dossel sagrado (1985). O sistema educa­cional presbiteriano que tomou forma na Escola Americana e no Mackenzie College de São Paulo, era portador desta filosofia educacional com suas principais características diferenciadoras: a raciona­lidade, o pragmatismo, a universalidade de oportuni­dades educacionais, o respeito a dignidade da pessoa humana, a primazia da inteligência sobre a memória, e o amor ao próximo, como observa Gomes (2000).
A racionalidade do espírito protestante, decan­tada por Weber em sua obra A ética protestante e o espírito do capitalismo (1994) e a doutrina do Livre Exame atenuava as tensões suscitadas pelos embates científicos entre a fé e a razão facilitando a aquisição de novas tecnologias e novos saberes (Teixeira, 1971).
O pragmatismo protestante, derivado da sua racionalidade metódica, desenvolveu uma educação voltada para aplicações práticas como a educação para o comércio e indústria comprovando as tese de Laveleye, (1951) e concretizando as esperanças de Tavares Bastos (1938), que sonhava com a formação de homens capazes de contribuir para o desenvolvi­mento social, científico e tecnológico.
A universalidade de oportunidades educacio­nais pode ser depreendida pela inclusão de mulheres no processo educacional já no século XVII. A educa­ção de mulheres e a sua utilização como professoras nas escolas ampliava o sistema educacional, incluin­do nesta própria família, como fator de alfabetização para a leitura da Bíblia (Rodrigues, 1962) e colabo­rava para a convivência respeitosa entre os sexos.
O respeito a dignidade da pessoa humana pode ser inferi da pela ausência de castigos físicos, com a utilização de reforços positivos, a educação funcionava como um facilitador da aprendizagem transformando-a numa atividade lúdica. Os reforma­dores sonhavam com uma educação capaz de aceitar o homem tal como ele se apresenta perante o criador e o seu próximo.
A educação reformada com a utilização do método silencioso e indutivo colocava a primazia da inteligência sobre a memória, fato que a escola brasi­leira, pela média, desconhece até hoje. O estímulo da inteligência propicia o desenvolvimento da consciên­cia critica e esta é capaz de gerar as transformações que a humanidade carece para o seu desenvolvimen­to e aperfeiçoamento em sua caminhada.
Educação para o amor ao próximo que se expressa de forma objetiva em ações concretas e par­ticipação responsável na construção da cidadania e do bem estar da coletividade e da comunidade. Considerando as mais importantes expressões da justiça social: justiça pela igualdade, justiça pela necessidade e justiça pela proporcionalidade, sendo que esta última é a grande mediadora das tensões econômicas e sociais no mundo ocidental.
Reconhece-se desta forma a estreita ligação existente entre os princípios éticos, religiosos e educa­cionais. O interesse universal em despertar o ser huma­no para os valores essenciais da vida permite que as diferentes culturas e povos busquem seus próprios valores. Todavia, princípios éticos e educacionais sem­pre definem os valores porque visam alcançar objetivos comuns: formar hábitos, costumes, comportamentos para a convivência social, e ao mesmo tempo informar o cidadão e fazê-lo consciente de seu compromisso social como participante solidário.
Esta pesquisa enfatiza que muitos educadores do passado como John Comenius (1592-1670), Horace Mann (1796-1854), John Dewey (1896- 1952), procuraram enfatizar a importância dos prin­cípios éticos e morais na educação de crianças e jovens, para que a criatividade humana fosse desper­tada e orientada, visando o bem comum. O ser huma­no é provido de imensa capacidade e habilidade e precisa ser motivado a buscar o seu próprio desen­volvimento. A escola torna-se o instrumento hábil que oferece as condições para o desenvolvimento dos talentos individuais. Toda a metodologia ou pro­cesso de ensino-aprendizagem tem como fim último oferecer condições adequadas para a educação alme­jada. Todavia, o aparato instrumental pode ser dire­cionado para o bem como para o mal; tanto para a edificação como para a destruição da vida humana; tanto para o benefício como para o malefício do ambiente social. Daí a importância dos valores que direcionam a educação, valores esses que se funda­mentam em princípios éticos e morais.
As escolas religiosas no Brasil enfrentam o dilema desafiante: educar para transmitir valores éti­cos e morais. No primeiro caso a prioridade firma-se no objetivo de angariar novos adeptos e ampliar a influência religiosa; no segundo caso a preocupação concentra-se em transmitir valores que se fundamen­tam em conceitos éticos e religiosos, para oferecer uma visão de mundo que implique em cidadania e responsabilidade social.
Em momentos especiais do ensino brasileiro procurou-se transmitir valores ou criar-se ambiente de responsabilidade social educando para a cidada­nia. O ensino religioso nas escolas tem sido assunto de muitos debates nos vários níveis de decisão, jun­tamente porque se sente a necessidade de uma edu­cação orientada por valores e princípios.
O problema educacional brasileiro, analisado por Azevedo (1976: 101) apresentava as marcas de orientações distintas:
No terreno educacional não haviam estabelecido senão os primeiros contactos, nem travado os primeiros com­bates às concepções escolares correspondentes às duas crenças religiosas e ligadas a duas culturas, já diferen­ciadas, a européia e a norte-americana: a pedagogia pro­testante, progressista e libertadora, que tendia antes à emancipação do espírito do que a uma domesticação intelectual, e o ponto de vista católico, mais conservador e autoritário, especialmente do jesuíta.
A educação passou a ser entendida como meio de realização da pessoa humana. Ela deve preparar a pessoa não só para uma habilitação profissional, mas também, e muito mais, para a própria vida, oferecen­do as condições mínimas de convivência social. A educação é uma arte e a mais difícil entre todas por­que a matéria-prima é o ser humano em formação e crescimento. Os valores a serem transmitidos e apreendidos devem preparar o educando para a vida qualificada e dignificada no exercício da cidadania consciente. A pedagogia moderna não deve somente transmitir conhecimentos, porque não passa de um exercício de memorização; ela deve levar à reflexão e à descoberta de valores que respondam às necessi­dades básicas da vida humana. Segundo a compreen­são de Comenius, considerado o pai da pedagogia moderna, a escola deve oferecer educação para:
Formar homens sábios na mente, prudentes nas ações e piedosos no coração; apoiada nos pilares da inteligência, memória e vontade, a formação dos homens deve abar­car, particularmente no trato com a juventude, a instru­ção, a virtude e a piedade (Comenius, 1954: 145).
Estamos envolvidos em todas as partes do mundo num conflito de valores e o futuro das gera­ções depende dos rumos a serem tomados por lideres orientados por seus próprios valores. É responsabili­dade primordial da educação discutir os valores cul­turais, religiosos e éticos, que estabelecem as diretrizes comportamentais da convivência social. Os valores definem as ações, portanto, a prática da cidadania. A educação deve ser julgada não tanto pelo que o homem possui em conhecimento, mas sim pelo que é e pelo que faz. Capacidade para uma cidadania eficiente e honesta é mais importante do que a intelectualidade de lideres teóricos. A cidada­nia se efetiva em ações que demonstram responsabi­lidade social e ética no respeito ao ser humano e à sua dignidade e identidade pessoais.
A educação participa da formação da lideran­ça e da preparação dos formadores de opinião, e nesse sentido, precisa oferecer ao debate os valores e princípios que determinam a formulação de conceitos para visualizar a cosmovisão que reflita a realida­de social. Os valores devem compor a compreensão holística e de maneira alguma serem usados para radicalizar posicionamentos ou padrões de comportamento social. A nossa sociedade globalizada preci­sa discutir os valores e princípios, respeitando as opções de cada grupo, uma vez que todos cooperem para a convivência social e a solidariedade.

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Os autores:
Osvaldo Henrique Hack Antônio é Pós-doutorado em História Social pela USP. É doutor em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo e em Ciências, área de Ciência Social, pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. É mestre em História e licencia­do em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Catarina. Bacharel em Teologia pelo Seminário Teológico Presbiteriano de Campinas. Chanceler da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Autor de vários artigos e é autor do livro Protestantismo e Educação Brasileira.
Máspoli de Araújo Gomes é doutor em Ciências da Religião pela UMESP, Mestre em Psicologia Social pela Universidade Gama Filho (RJ), especialista em Assuntos Psicossociais pela Escola Superior de Gerra, Estudos Brasileiros pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e Sociologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Bacharelado em Teologia pelo Seminário Presbiteriano do Sul (Campinas). Ex-professor do Seminário Teológico Presbiteriano Rev. José Manuel da Conceição, professor do Seminário Presbiteriano do Rio de Janeiro desde a sua fundação até hoje. Professor titular de Teologia, diretor e fundador da Escola Superior de Teologia da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Coordenador do Mestrado em Teologia da Universidade Presbiteriana Ma­ckenzie e atual diretor do Centro Presbiteriano de Pós Gra­duação Andrew Jumper. Pastor Presbiteriano há mais de 20 anos, dedicado ao efetivo pastorado de igrejas presbiterianas

Fonte: Um Olhar Sobre a Ética e Cidadania, Coleção Reflexão Acadêmica, vários autores, Universidade Presbiteriana Mackenzie, pág. 53-57.

Extraído do site: http://www.eleitosdedeus.org

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