quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Desafios da Pós-Modernidade para o Novo Calvinismo:
A Questão da Inspiração das Escrituras

Leandro Antonio de Lima

Não pode haver dúvidas de que Calvino sustentava um conceito de inspiração que somente poderia ser descrito como “verbal” e “plenário”, estendendo-se tanto à linguagem quanto ao estilo (Polmann, 1974, pág. 102). Entretanto, para Calvino, Deus se revelou adaptando-se à capacidade humana, isso quer dizer que ele usou descrições e palavras que tornavam compreensíveis para o ser humano a mensagem. São muitos os textos de Calvino que descrevem esse processo. No comentário de Deuteronômio, ele assinalou:
Os crentes têm que sempre recordar que Deus não falou de acordo com sua natureza. Se tivesse falado com sua própria linguagem, que mortal poderia ter compreendido? Não! Como ele tem nos falado na Escritura Sagrada? Tem se adaptado a nossa reduzida natureza como uma babá balbucia palavras a uma criança adaptando-se a seu nível de entendimento. Assim, Deus tem se adaptado a nós, uma vez que nunca estaríamos em condições de compreender o que ele diz, se não tivesse se aproximado de nós. Consequentemente, ele faz o papel de uma babá na Escritura (Citado por Polmann, 1974, pág. 110).[1]
Calvino não tinha dificuldades em entender que certos termos utilizados na Bíblia foram acomodados para a compreensão de um povo que era, segundo suas palavras, rude, ignorante e imperfeito (Ver comentários de Calvino em Dt 22.23; Êx 24.9; Êx 33.21; Dt 30.1). Para Calvino, quando Deus fala, “ele se acomoda à nossa capacidade” (1996, pág. 82, 1Co 2.7).
Em outro lugar, Calvino volta a descrever a tarefa divina de se revelar como a de uma babá que balbucia a um infante, não obstante, ele entende que isso não desqualifica a Escritura, antes faz com que nos apeguemos ainda mais a ela, pois somente ela pode nos mostrar quem é Deus:
Onde quer que falemos dos mistérios de Deus, temos que tomar a Escritura como Guia, adotar a linguagem que ela ensina e não nos exceder nesses limites, já que Deus sabe que nossa mente não pode ascender tão alto como para compreender a ele se tivesse que empregar palavras dignas de sua majestade, e, por isso, ele se adapta a nossa pequenez. E como uma babá balbucia ao infante, assim ele emprega uma linguagem especial para nós, de forma que possamos compreendê-lo (Citado por Polmann, 1974, pág. 111).[2]
A importância desse conceito está justamente no não insistir no literalismo excessivo da Escritura. Certos aspectos da Bíblia não precisam ser literais para que sejam inspirados ou normativos ou para que tenham o caráter de verdadeiro, como é o caso dos seis dias da criação. Isso, evidentemente, não envolve uma aceitação simples das teorias científicas, nem mesmo uma adaptação às teorias científicas, mas apenas um entendimento mais profundo do caráter da Escritura como revelação de Deus. Faz tempo que os reformados aceitam que a Escritura usa a linguagem do homem comum para descrever os fenômenos. Se a Escritura diz que o sol gira ao redor da terra e que o vento tem seus depósitos em algum lugar, ela o está fazendo nos termos que os homens daquela época podiam compreender. Ela não está usando linguagem científica justamente porque o povo daquela época não tinha acesso à linguagem científica. Assim também ela diz que Deus tem ouvidos e até estômago, além de sentimentos humanos como arrependimento e ciúmes, porque precisa descrever Deus com categorias humanas, afinal, essas são as únicas que o homem consegue entender. Para muitas pessoas, ou todo o texto da criação do livro do Gênesis tem que ser literal, ou não pode mais ser aceito como inspirado. Embora essa opinião deva ser respeitada, talvez não seja necessário tal radicalismo para continuar crendo na inspiração plenária das Escrituras.
É importante que se entenda que o que se está propondo não é um abandono puro e simples das definições normalmente aceitas sobre o caráter da Bíblia, mas apenas um diálogo e uma avaliação de outras possibilidades, como um desenvolvimento da própria concepção de Calvino sobre a Escritura.
Se o conceito de inspiração em Calvino envolve, em algum ponto, uma acomodação, então, definitivamente, ele não poderia ser submetido a um teste de caráter científico. O ponto chave é que Calvino defendia a questão do testemunho interno do Espírito Santo como “prova” definitiva para o cristão da veracidade da Bíblia e não a submissão aos testes empíricos.
Assim, com surpresa, é possível perceber que o conceito de Calvino a respeito da Bíblia tem muito mais potencial para a pós-modernidade do que o literalismo bíblico do fundamentalismo influenciado pelo modernismo. Tinha também mais potencial para a própria modernidade, mas, como McGrath observou, talvez ele não tenha sido levado tão a sério.

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Sobre o autor: Leandro Antonio de Lima é Bacharel em Teologia pelo Seminário Presbiteriano José Manoel da Conceição, Mestre em Teologia e História pelo Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper, Mestre em Ciências da Religião pela Universidade Mackenzie, e doutorando em Letras (Literatura), pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. É pastor efetivo da Igreja Presbiteriana de Santo Amaro em São Paulo e professor de Teologia Sistemática no Seminário Presbiteriano Rev. José Manoel da Conceição. É também professor de teologia na FITref. Escreveu Razão da Esperança - Teologia para hoje (2006) e Brilhe a sua luz: o cristão e os dilemas da sociedade atual (2009), ambos da Editora Cultura Cristã.
Fonte: Novo Calvinismo

Extraído do site: http://www.eleitosdedeus.org

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