por Felipe Assis
O princípio regulador do culto tem sido uma das principais manchetes da atualidade nos nossos círculos reformados. Recentemente, a I.P.B. passou uma resolução vinda da C.E. proibindo o uso de manifestações corporais nos cultos da denominação. O meu objetivo não é de refutar o documento produzido pela C.E, mas de refletir sobre os princípios do Principio Regulador concernente às suas repercussões em nossas congregações.
Quando se toca neste assunto, principalmente em conversas entre ministros reformados, dois posicionamentos podem ser identificados: o primeiro parte de um grupo que defende com unhas e dentes o Principio Regulador do Culto e que o aplica da forma mais radical possível proibindo o uso de instrumentos musicais, expressões corporais, apresentações teatrais e o canto de qualquer coisa que não provenha ipsi literis das Escrituras. Geralmente, esses não cantam nada em culto público a não ser os Salmos. O outro grupoé bem maior do que o primeiro; rejeita completamente o Principio Regulador, acusando-o de ir além dos princípios escriturísticos da adoração a Deus. Esses geralmente não são confessionais (não aderem à Confissão de Fé de Westminster), mas ainda permanecem dentro de uma denominação confessional reformada e gastam suas forças combatendo-a.
Pessoalmente, acho que essas duas correntes são extremadas. O Princípio Regulador é bem bíblico e pode ser usado de uma forma equilibrada, ajudando as igrejas locais a serem contextualizadas e ainda assim manterem suas raízes nos princípios das Escrituras, que ensinam a respeito do culto a Deus.
A Lei de Deus regula o culto no Antigo Testamento mais do que qualquer outra área da vida. Por isso, devemos prestar mais atenção no que diz respeito ao nosso culto a Deus, do que outras coisas da vida como: “Que carreira devo seguir?” ou “Com quem devo me casar?” Isso mostra que o principio por trás do Principio é consistente e correto.
A Confissão de Fé de Westminster, no cap. 21 art. 1, nos dá uma clara definição do que é o Princípio Regulador do culto. Ela diz:
“...o modo aceitável de adorar o verdadeiro Deus é instituído por ele mesmo e tão limitado pela sua vontade revelada, que não deve ser adorado segundo as imaginações e invenções dos homens ou sugestões de Satanás nem sob qualquer representação visível ou de qualquer outro modo não prescrito nas Santas Escrituras”.
A palavra “prescrito” tem sido alvo de muitas confusões e más interpretações. A ala que interpreta a Confissão de um modo mais radical afirma, por exemplo, que nada deve ser cantado no culto público a não ser os Salmos. Esses se embasam em outro artigo da Confissão para fundamentar seu posicionamento. O artigo 7 do mesmo capítulo diz:
“A leitura das Escrituras com o temor divino, a sã pregação da palavra e a consciente atenção a ela em obediência a Deus, com inteligência, fé e reverência; o cantar salmos com graças no coração, bem como a devida administração e digna recepção dos sacramentos instituídos por Cristo - são partes do ordinário culto de Deus”.
Veja que o artigo mostra os elementos essenciais do culto cristão. Estes são: 1. Leitura das Escrituras 2. Pregação da palavra 3. O cantar dos salmos 4. Administração dos Sacramentos (batismo e santa ceia). Se destacarmos o terceiro elemento, que é o centro de nossa discussão, veremos que ele não é “Salmos” e sim “salmos”. “Salmos” é muito diferente de “salmos”. Salmos é o livro inspirado da bíblia, salmos é uma forma de expressão a Deus. A palavra salmos quer dizer literalmente “cantar ao som da harpa”. Se Salmos é um livro da Bíblia, o uso de salmos é recomendação paulina ao culto público (Efésios 5:19, Colossenses 3:16).
Aqueles que adotam exclusivamente literatura inspirada para cantar, mas ao mesmo tempo usam palavras improvisadas para orar, são extremamente inconsistentes. Se quiser usar literatura para cantar, use também orações inspiradas ao dirigir-se a Deus.
Retornando ao artigo primeiro do capítulo 21 citado acima, concluímos que “prescrito” não quer dizer um uso literal dos textos bíblicos que se referem ao culto, até mesmo por que se fosse assim teríamos muitos problemas de ordem interpretativa. O que “prescrito” quer dizer é que devemos ter embasamento bíblico para tudo que venhamos a utilizar no nosso culto público. Isto é o que nos diferencia dos católicos, luteranos e anglicanos.
É bom lembrarmos que o Princípio Regulador do Culto foi criado com dois propósitos básicos.
1. Eliminar do culto cristão toda idolatria que era presente na missa Católica. Isso ia desde os ritos, às vestimentas. Da remoção das imagens às simplificações litúrgicas. 2. Proteger a liberdade de consciência que era constantemente violada pelas liturgias anglicanas, onde até aleijados eram obrigados a se ajoelharem para receberem os elementos eucarísticos. Ambos os propósitos do Princípio são bíblicos, portanto, corretos e relevantes para qualquer era. A Bíblia transcende culturas e épocas. Por isso devemos continuar removendo os ídolos dos nossos cultos e continuar protegendo a liberdade de consciência do rebanho.
Para aplicar o Princípio corretamente hoje, não podemos apenas repetir o que foi feito nos séculos 16 e 17. Se reproduzirmos literalmente, estaremos ignorando o próprio lema da Reforma: ecclesia semper reformanda est (a igreja sempre reformando). Richard Pratt diz que “não podemos representar a tradição reformada sem re-representá-la”. Isso significa que devemos continuar a identificar os ídolos e as imposições à liberdade de consciência. Certamente os ídolos que o culto medieval enfrentava eram bem diferentes daqueles que a Igreja de hoje enfrenta. As imposições também são diferentes. Honestamente, hoje, os ídolos se diferenciam de igreja para igreja e de local para local. A idolatria de uma cultura pode não ser a idolatria de outra e as imposições de uma congregação podem não ser as mesmas de outra congregação.
Quais são alguns dos ídolos hoje?
Esta é uma tarefa muito difícil. De início, é bom estabelecermos que ídolos não são apenas imagens de escultura. Ídolo é tudo aquilo que toma o lugar de Deus. É tudo aquilo que venha obscurecer a Cristo. Exige muita introspecção e sinceridade para darmos nome aos nossos ídolos hoje, mas geralmente os ídolos das nossas comunidades evangélicas se resumem a alguns: 1. Aqueles que transformam o culto num divã da auto-ajuda; 2. Aqueles que transformam o culto numa sala de aula; 3. Aqueles que transformam o culto num show; 4. Aqueles que transformam o culto numa sessão de descarrego emocional. Lembre-se que nenhuma dessas formas de culto são necessariamente incorretas em si mesma. Mas, quando se tornam o modelo central de se cultuar, a coisa vira idolatria.
Pessoalmente, acho que no nosso círculo reformado, o intelectualismo é o nosso ídolo. Tornamos os cultos numa sala de aula. Com certeza este modelo foi necessário e relevante há alguns séculos atrás, porém isso não quer dizer que seja tão essencial hoje. No cristianismo brasileiro (católicos e evangélicos) acho que a emoção de uma forma geral é o nosso ídolo. Ninguém sente o mover do Espírito a menos que um irmão chore ou outro caia duro no chão. É claro que temos outros ídolos até mesmo porque o culto sempre é oferecido por seres humanos, criaturas inerentemente idólatras. Calvino costumava dizer que “o coração humano é uma indústria de ídolos”. Como disse anteriormente, é muito difícil identificarmos todos os nossos ídolos, porém isso não significa que devamos nos acomodar neste sentido.
Outra pergunta que devemos fazer é: O que hoje aflige nossa liberdade de consciência?
Novamente, é difícil identificarmos este outro fator já que temos cultos e igrejas para todos os gostos. Existe até igreja pra metaleiro e surfista. Na nossa tradição reformada, acho que a insistência por parte de uns em cantar única e exclusivamente os Salmos tem se tornado um ataque à consciência alheia, sem falar que as provas bíblicas para tal medida são fraquíssimas. É também muito comum em nossas igrejas dirigentes de louvor que forçam as pessoas a levantarem as mãos, pularem e ficarem de pé. Isso também não deixa de ser uma forma de ataque à liberdade de consciência. A consciência do crente não pode ser cativa senão às Escrituras. Foi isso o que Lutero disse quando questionado na dieta de Worms: “Minha consciência é cativa a Palavra de Deus. Eu não posso e não me retratarei em nada, porque ir de encontro à consciência não é certo nem seguro”.
De fato, o nosso desafio de nos mantermos fiéis no Culto à Trindade, não é tarefa fácil. Os nossos antepassados reformadores fizerem um bom trabalho nos seus dias; resta-nós fazermos o mesmo. O Princípio Regulador do Culto tem caracterizado a nossa tradição reformada há séculos. Apesar de anos passados, ele é relevante hoje do mesmo jeito que foi quando foi estabelecido. Devemos aplicar os seus princípios no séc. 21 onde a Igreja de Cristo procura novos meios para que possa adorar a Deus em Espírito e em Verdade.
Para compreensão posterior deste posicionamento leia:
Contemporary Worship Music: A Biblical Defense – John M. Frame.
Worship in Spirit and in Truth – John M. Frame.
The Regulative Principle of Worship (paper) – Douglas F. Kelly.
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