Por Marcelo Lemos
O povo evangélico gosta de alimentar a ideia de ser uma igreja “una”(1), a fim, imagino, de diminuir o desconforto de ser responsável pela cada vez maior fragmentação do Corpo de Cristo. Além disso, é alimento para o ego: crente gosta de achar que é grande, especialmente para competir com os católicos romanos, risos. Dizem que tamanho não é documento, convencer os evangélicos disso são outros quinhentos (2). São afirmações rudes, mas sem preconceitos, acreditem-me. Aprecio os esforços pela busca da unidade, desde que, nessa busca, não sejamos forçados a abrirmos mão da nossa identidade, o que inclui a manutenção de nossos valores bíblicos.
As decisões tomadas recentemente pelo Supremo Concílio da Igreja Presbiteriana do Brasil (IPB), referentes a sua própria liturgia(3) e ao seu relacionamento interdenominacional(4), causou as mais diversas reações, inclusive a critica daqueles que acham que as decisões tomadas servem apenas para dividir ainda mais o já fragmentado meio gospel. Quem assim pensa, se esquece que a referida Igreja não propõe coisa nova, mas tenta resgatar e reafirmar seus antigos valores – existentes a quase 500 anos, e remetem a princípios teológicos ainda mais antigos.
Ademais, é de suspeitar que boa parte dos críticos(5) da decisão, também faz parte daqueles que não costumam reclamar quando algum 'apóstolo' ou 'levita' impõe liturgia nova, nem costumam os acusar de causar divisões no Corpo (ainda que estejam tentando destruir 500 anos de História). Tendo vários amigos presbiterianos, sei o quanto alguns sofrem com a ditadura dos “tolerantes” adoradores moderninhos, risos: especialistas em adoração que toleram qualquer coisa, qualquer inovação, menos as orientações teológicas dos Símbolos de Fé que dizem professar!
Pessoalmente, não acho que a liturgia da IPB, fortemente influenciada pelo Puritanismo em sua ala majoritária(6), seja a única liturgia possível. No entanto, seria loucura não admitir que, independentemente das minhas próprias convicções estético-liturgicas, estamos vivenciando um momento histórico - uma igreja tomando partido a favor de um culto fiel a Doutrina Bíblica: o serviço de adoração da Ekklesia deve ser prestado a Deus, e não ao homem. Vejam, não estou falando de estética, mas de princípio regulador(7). Este princípio regulador, que eu definiria como “o culto é voltado para Deus”(8), é cardeal, absolutamente necessário, não importa se somos luteranos, anglicanos, presbiterianos, batistas ou pentecostais...
Em nome de uma artificial “unidade”, agente tende a olhar torto para decisões como a da IPB, nos esquecendo que, na opção inversa, na via do politicamente correto, não haveria unidade, mas covardia e conformismo, que além da eterna hipocrisia, nos condenaria também a estarmos a serviço daqueles que almejam destruir o culto e a doutrina cristã, substituindo-os pelo culto ao homem e a megalomania desta ou daquela persona. Que unidade existe quando a essência da nossa fé é ameaçada?!
Sim, refiro-me a “apóstolos” (9), “levitas”, “dançarinos proféticos” e “adoradores extravagantes”, mas não só a eles, evidentemente. Vão dizer que não querem destruir nada, discordo: se não desejassem uma nova religião, não se esforçariam para reescrever a fé cristã, nem sua Teologia e História. Se não fossem hereges, estariam defendendo a sã doutrina, e não aplaudindo os vendilhões do templo, os pastores que imitam Michael Jackson no Púlpito, os adoradores que rastejam pelos palcos, ou intercessores que demarcam território com urina e expulsam o Encardido com bota de píton. E a lista de exemplos poderia ser maior, pois a cada dia cresce mais um pouco: também não achariam normal que uma pastora de renome fosse ao Programa do Faustão afirmar, ao lado de um padre igualmente sem sal, que a verdade é individual e relativa.
Sim, eu almejo unidade, mas não a unidade da 'titica'.
O grande problema é que vivemos na era da idiotização, onde não existe lugar para Verdades Absolutas, e falar em Doutrina é tido como coisa de “crente frio, legalista e fariseu”. A única 'verdade' que existe é o próprio homem e seus caprichos. Não se trata de um problema que atinge apenas a Igreja, mas toda a sociedade. A idiotização é o espírito da nossa era(10). Seria simplista, portanto, imaginar que o problema da Igreja seja meramente litúrgico. Na liturgia, a Ekklesia apenas transfigura o que há nos recantos mais escondidos de sua alma. Esse culto moderninho(11), que super valoriza o homem, dedica-se a diversão, a extravagancia dos sentidos e das emoções, diminui o uso da razão, destrói a reverencia, e promove personalidades, é apenas uma confissão eloquente de que destronamos o Cristo, e entronizamos a nós mesmos. Nosso problema é, acima de tudo, Teológico.
Não que defenda a negação neoplatonista da importância daquilo que é próprio da natureza humana, e que a Escritura jamais lhe negou lugar na Divina Liturgia(12). Por falar nisso, os liturgistas evangélicos, se é que ainda existem, (no que incluo minha turma, os reformados) muito aprenderiam, segundo penso, se lessem a Revelação de S. João sob a ótica do culto ali retratado. Talvez conseguíssemos unir com maior propriedade “razão” e “símbolo”, evitando cair em qualquer dos extremos, inclusive aquela ideia de que adoração só é legitima quando exclui o lado direito do cérebro. Não me preocupo mais com a estética do que com o homem estar sendo entronizado em nossa adoração.
Em linhas gerais, aprovo a decisão da IPB, pois ela denuncia o quanto somos tolos; tolos querendo cultuar a Deus, mas sem ao menos conhecer o conceito mais básico do que é o culto cristão. Nessa tolice, quase sempre, implica em reinventarmos o cristianismo a cada nova celebração, jogando no lixo 2000 anos de História e Teologia, e no desprezo aos próprios princípios Reformados para o culto público, os quais, há 500 anos, tem moldado a nossa identidade “evangélica”. Se é verdade que na Liturgia se revela a “imagem e semelhança” da nossa Teologia, ou, para os mais escolásticos, “lex orandi, lex credenti”, implica admitirmos que estamos traindo a Reforma Protestante, e já há algum tempo, e inventamos nossa própria religião, a religião centrada no homem(13).
Não me entendam ressentido com púlpitos em formato de pranchas, ou dando preferencia aos de acrílico ou madeira de lei. Nem se iludam vendo em mim mais um defensor da Salmodia Exclusiva(14), proposta pela ala neo-puritana da IPB , ainda que aprecie seu uso e importância no culto. Tenho minhas preferencias estéticas, mas minha defesa precípua é pala natureza do culto em si. Acho, inclusive, que enquanto preceito, a decisão da IPB é pouco eficaz, sendo necessário investimento na formação teológica de seus membros, ordenados ou leigos. Se nossa teologia cúltica está errada, a liturgia será errada. Não é uma liturgia estranha que ameça a IPB, mas uma teologia de culto estranha, que uma vez dentro, corrompe a liturgia.
O mais hilário nesse debate é a imagem de vanguarda que a “geração apostólica” cultiva e alardeia. Eles se consideram o “balsamo” que o Espírito está derramando na “Igreja ferida” dos nossos dias. Eles acreditam – ouvi isso numa palestra na Batista Lagoinha – que são o próximo passo da Reforma, o coroamento dos ideais de Lutero. Entretanto, a única inovação que introduziram na Igreja foi colocar o homem como o centro do Evangelho, e, por conseguinte, do culto; e nisso, não são vanguardistas: apenas seguem o espírito apóstata deste século. Mas isso, caros amigos de subversão, é tema para um próximo artigo.
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(1) Não fosse a ignorância teológica cronica de líderes e liderados, unida a megalomania de cada um em reinventar o cristianismo, os detalhes que nos separam jamais impediram nossa unidade;
(2) Caio Fábio acrescentaria ainda, por exemplo, que um dos desejos dos crentes hoje é fazer uma Marcha Para Jesus cada vez maior, a fim de não dar o braço a torcer para a Parada Gay;
(3) Proibindo-se modismos, tais quais as “danças proféticas” e líderes que se autodenominam “apóstolos”. Observação pessoal: entendo que danças, teatros e shows podem ser usado legitimamente pela Igreja e pelos cristãos, desde que fora do ambiente litúrgico, e sem conotações pagãs;
(4) Corajosamente, na contramão das tendencias atuais, declarou-se a heterodoxia de instituições neopentecostais como IMPD e IURD. Observação pessoal: concordo com a repudio a tais instituições, mas acredito que os membros delas devem ser tratados individualmente, de modo pastoral, já que, a priori, tais organizações não rejeitam os Credos;
(5) A liturgia da IPB não está, de modo algum, acima da critica; refiro-me aqueles que pensam que a mesma deveria abrir suas portas para valores que minam sua identidade bíblica e histórica;
(6) Lembrando que há presbiterianos que seguem uma liturgia mais aos moldes da High Church, numa demonstração consistente de que o culto não precisa ser estritamente Puritano para ser fiel as Escrituras e seu princípio regulador; outros, possuem uma liturgia mais Avivalista, e são tão fieis ao princípio regulador quanto os outros;
(7) Ainda que possamos divergir da estreiteza dita puritana, creio que todo cristão evangélico-reformado aceitará como verdadeiro a essência do Princípio Regulador que herdamos deles: “... o modo aceitável de adorar o verdadeiro Deus é instituído por Ele mesmo e tão limitado pela vontade revelada, que não deve ser adorado segundo as imaginações e invenções dos homens...” (CFW, XXI,1).
(8) Favor não confundir com o “voltados para Deus” do Rito Tridentino, da Igreja de Roma, primeiramente rejeitado pelos Reformadores, e mais recentemente, feito menos usual dentro do próprio catolicismo romano a partir do Concílio Vaticano II. Não falo, atentem bem, de 'voltado para Deus' no sentido meramente estético como se apresenta ali (ainda que não o descarte inteiramente), mas como disposição interna: ou seja, Deus é o centro do culto, de modo que qualquer coisa que fuja daquilo que Deus ordenou para o culto público, ou que coloque outra coisa no centro, além de Cristo mesmo, deve ser rejeitado. Mas, para conhecer um pouco deste conceito - “voltados para Deus” - enquanto “estética”, e dentro da liturgia reformada, recomento o estudo das rubricas sobre a Santa Comunhão do Livro de Oração Comum de 1662, recentemente traduzido e publicado por nossa querida Igreja Anglicana Reformada, que inclui ainda outros dois grandes referenciais litúrgicos, 'An English Prayer Book', da Church Society, e 'Sunday Services', da Arquidiocese Anglicana de Sydney, Australia.
(9) Para uma breve analise teológica sobre a validade do “apostolado moderno”, tomo a liberdade de indicar um texto recentemente publicado no meu blog, atendendo a perguntas dos meus leitores, que pode ser acessado aqui;
(10) Na sociedade, presenciamos o avanço da chamada “intolerância dos tolerantes”, ou seja, aqueles que recusam submissão a qualquer Verdade Absoluta, tornam sua visão de mundo verdade incontestável e acima da critica. É a Ditadura dos Idiotas: se advoga a inexistência da Verdade, e obriga todos a subserviência a preceitos nascidos da idolatrada ignorância;
(11) Apesar de alguns justificarem certas inovações litúrgicas e eclesiásticas apelando a um princípio da Reforma, “semper reformanda”, não é argumento a se levar a sério, pois que a Reforma não quis inovar valores, mas restaurar valores, tendo para isso tomado as Escrituras como guia;
(12) Não podemos, todavia, fazer do “culto racional” um “culto a razão”, na qual os sentimentos, as emoções e as experiencias sensoriais sejam hostilizadas como se fossem, por si só, pecaminosas. Esta é uma critica justa que se faz contra o puritanismo mais radical;
(14) Conceitos do tipo “adoração profética”, “dança profética”, “palavra profética”, dentre outras inovações litúrgicas, como a 'cristianização' de objetos judaicos e da cabala, não apenas testificam o analfabetismo bíblico de grande parte dos nossos “evangélicos”, como também testificam a paganização de sua espiritualidade. Estamos sim, diante de uma nova religião, muito pior que o catolicismo rejeitado pelos Reformadores: no passado, a Reforma lutou contra o acréscimo a fé, hoje, acredito que nosso desafio é contra a desconstrução da fé;
(15) Seus defensores acreditam que as únicas músicas aceitáveis no Culto Público são os do Saltério Bíblico; no outro extremo, situa-se a grande maioria, que não sabe que os Salmos sempre fizeram parte da Liturgia Cristã (Efe. 5.19, Col.3.16), e nem compreendem seu valor litúrgico e teológico.
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