"Agnósticos Fundamentalistas: Dá para ter até mesmo estes?" |
O termo "fundamentalista" está entre os rótulos
mais mal compreendidos e mal empregados nos meios evangélicos. É o rótulo
preferido por alguns para se referir, sempre com viés pejorativo, a quem adere
com firmeza a determinadas doutrinas que são consideradas como antigas e
ultrapassadas.
Nada mais natural do que procurar esclarecer o significado
do termo. Acho que a primeira coisa a ser feita é lembrar que o termo
"fundamentalista" tem sido usado para diferentes grupos através da
história e no presente.
1) O fundamentalista cristão histórico não existe mais. Ele
existiu no início do século XX, durante o conflito contra o liberalismo
teológico que invadiu e tomou várias denominações e seminários nos Estados
Unidos. J. G. Machen, John Murray, B. B. Warfield, R. A. Torrey, Campbell
Morgan, e mais tarde Cornelius Van Til e Francis Schaeffer, são exemplos de
fundamentalistas históricos.
2) O fundamentalista cristão americano ainda existe, mas perdeu
muito de sua força. Embora tenha surgido ao mesmo tempo em que o fundamentalismo
cristão histórico, separou-se dele quando adotou uma escatologia
dispensacionalista, aliou-se à agenda republicana dos Estados Unidos, exerceu
uma militância belicosa contra tudo que considerasse inimigo da fé cristã.
Defendia e praticava o separatismo institucional de tudo e todos que estivessem
ligados direta ou indiretamente a esses inimigos. Pouco tempo atrás faleceu o
que pode ter sido o último grande representante desse gênero de
fundamentalista, o famigerado Carl McIntire. Alguns consideram que Pat
Robertson é seu sucessor, embora haja muitas diferenças entre eles.
3) O fundamentalista denominacional é aquele membro de
denominações cristãs que se consideram oficialmente fundamentalistas e que até
trazem o rótulo na designação oficial. Após um período de grande florescimento
no Brasil, especialmente no Nordeste e em São Paulo, as igrejas
fundamentalistas, presbiteriana e batista, sofreram uma grande diminuição em
suas fileiras. Grande parte das igrejas fundamentalistas presbiterianas
regressou à Igreja Presbiteriana do Brasil, de onde estas igrejas saíram na
década de 50. Em alguns casos, o fundamentalismo denominacional do Brasil foi
marcado por laços financeiros e ideológicos com McIntire. Hoje, até onde eu
sei, não há mais esse laço. No Brasil, o fundamentalismo denominacional que
sobrou desenvolveu em alguns de seus grupos (mas não em todos) uma síndrome de
conspiração mundial para o surgimento do Reino do Anticristo através do
ocultismo, da tecnologia, da mídia, dos eventos mundiais, das superpotências.
Acrescente-se ainda o desenvolvimento de uma mentalidade de censura e apego a
itens periféricos como se fossem o cerne do evangelho e critério de ortodoxia
(por exemplo, só é bíblico e conservador quem usa versões da Bíblia baseadas no
Texto Majoritário, quem não assiste desenhos da Disney e não assiste “Harry
Potter”).
4) O fundamentalista cristão xiita é sinônimo de
intransigência, inflexibilidade, ser-dono-da-verdade e patrulhamento
teológico.
Essa conotação do termo ganhou popularidade após o avanço e crescimento
do fundamentalismo islâmico. Esse tipo tem mais a ver com atitude do que
com teologia. Nesse caso, é melhor
inverter a ordem e chamá-lo de xiita fundamentalista. Na verdade, xiitas
podem
ser encontrados em qualquer dos campos protestantes. A propalada
tolerância dos
liberais e neo-ortodoxos é mito. Há xiitas liberais, neo-ortodoxos, e
obviamente, xiitas fundamentalistas. Teoricamente, alguém poderia ser um
fundamentalista e ainda não ser um xiita.
5) Por fim, o fundamentalista cristão teológico, outro sentido
em que o termo é muito usado e que significa simplesmente ortodoxo ou
conservador em sua doutrina. O fundamentalista teológico se considera seguidor
teológico dos fundamentalistas históricos e simpatiza com a luta deles. Sem
pretender ser exaustivo, acredito que podem ser considerados fundamentalistas
teológicos atualmente os que aderem aos seguintes conceitos ou a parte deles:
- a inerrância da Bíblia
- a divindade de Cristo
- o seu nascimento virginal
- a realidade e historicidade dos milagres narrados na Bíblia
- a morte de Cristo como propiciatória, isto é, por nossos pecados
- sua ressurreição física de entre os mortos
- seu retorno público e visível a este mundo e a ressurreição dos mortos
Outros pontos associados com o fundamentalismo histórico são
o conceito de verdades teológicas absolutas, o conceito de que Deus se revelou
de forma proposicional e a aceitação dos credos e confissões da Igreja Cristã.
Numa esfera mais periférica se poderia mencionar que a
maioria dos fundamentalistas históricos prefere o método gramático-histórico de
interpretação bíblica e tem uma posição conservadora em assuntos como aborto, eutanásia
e ordenação feminina. Muitos ainda preferem a pregação expositiva.
E todos rejeitam
o liberalismo teológico.
Em linhas gerais, o fundamentalista teológico acredita que a
verdade revelada por Deus na Bíblia não evolui, não cresce e nem muda.
Permanece a mesma através do tempo. A nossa compreensão dessa verdade pode
mudar com o tempo; contudo, essa evolução nunca chega ao ponto radical em que
verdades antigas sejam totalmente descartadas e substituídas por novas verdades
que inclusive contradigam as primeiras. O fundamentalista teológico reconhece
que erros, exageros e absurdos tendem a ser incorporados através dos séculos na
teologia cristã e que o alvo da Igreja é sempre reformar-se à luz dos
fundamentos da fé cristã bíblica, expurgando esses erros e assimilando o que
for bom. Admite também que existe uma continuidade teológica válida entre o
sistema doutrinário exposto na Bíblia e a fé que abraça hoje.
Acho que é aqui que está a grande diferença entre o
fundamentalista teológico e o liberal. Esse último acredita na evolução da
verdade a ponto de sentir-se comissionado a reinventar a Igreja e o próprio
Cristianismo.
Muitos me chamam de fundamentalista. Bom, não posso ser
fundamentalista histórico, pois nasci muito depois da luta de Machen. Contudo,
sou fã dele, que era um perito em Novo Testamento. Não sou um fundamentalista
americano, pois sou brasileiro da Paraíba, nunca recebi um tostão de McIntire e
sou amilenista. Aliás, nem conheci McIntire pessoalmente. Fui fundamentalista
presbiteriano denominacional por decisão dos meus pais quando eu tinha doze
anos. Saí da denominação fundamentalista após conversão e entrada no ministério
pastoral. Também não me acho xiita. Há controvérsia sobre isso, eu sei.
Na categoria de fundamentalistas teológicos encontramos
presbiterianos, batistas, congregacionais, pentecostais, episcopais, e
provavelmente muitos outros. É claro que nem todos subscrevem todos os pontos
acima e ainda outros gostariam de qualificar melhor sua subscrição. Contudo, no
geral, acho que posso dizer que os fundamentalistas teológicos não fariam feio
numa pesquisa de opinião sobre o que crêem os evangélicos brasileiros. Por esse
motivo, e por achar que o assim chamado fundamentalismo teológico é
simplesmente outro nome para a fé cristã histórica, não fico envergonhado
quando me rotulam dessa forma, embora prefira o termo calvinista ou reformado.
Fonte: O Tempora, O Mores
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