quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Cartas a Lene - Consolo Pela Graça



Por Marcelo Lemos
Querida Lene, paz e bem!
Em nossas cinco cartas anteriores, sola scriptura, sola gratia, sola fidei, solus Christus e soli Deo gloria, comentamos brevemente os fundamentos áureos da Fé Reformada. Conquanto cinco solas e cinco cartas formem (ao menos de nome) um todo, nossas cartas, com a Graça de Deus, tendem a continuar. À medida que formos avançando é possível que nossas cartas ganhem um pouco mais de densidade, conforme caminhemos pelas sendas da catequese cristã reformada.
Minha carta de hoje te convida à primeira questão do Catecismo de Heidelberg:
Qual é teu único consolo tanto na vida como na morte?

A morte é um fato. E apenas um grupo de pessoas possui esperança diante da morte: os cristãos. Os demais, independentemente do quanto são apreciados, admirados, ou mesmo invejados, fazem parte dos que “não têm esperança” (I Tes. 4.13). Apenas o cristão pode ter esperança quando a Morte cumpre seu ofício. Como isso é possível?
A esperança da Igreja não é possível por causa dos cristãos. Que é a Igreja se não uma assembleia de pecadores? Fomos predestinados, chamados, separados dos demais, feitos Eclésia – assembleia – de “santos” (Rom 1.7). Somos santos! Isso se deveu a nós mesmos? Absolutamente. Em nós, nenhum bem há. Atribuir, como alguns pretendem, alguma participação humana no que somos em Cristo, equivale a esperar que um defunto possa decidir levantar-se e voltar a viver. Mas, diz S. Paulo, quando estávamos “mortos em ofensas e pecados” (Ef. 2.1), Cristo nos trouxe à vida. Somos o que somos, se o somos, por causa de Cristo. Solus Cristus.
A morte é um fato, mas não só. A morte é também, e acima de qualquer outra coisa, condenação. Conhecemos o pecado, em Adão? Sentimo-nos livres, sabedores do bem e do mal, senhores do nosso destino, autônomos. Deu-nos Deus a Morte, que abraçou-nos, beijou-nos e subiu a bordo da nossa existência. Morte que é não apenas física, mas também espiritual. Morte espiritual que, nas palavras do Catecismo de Heildelberg, nos tornou “tão corrompidos que não podemos fazer bem algum e que somos inclinados a todo mal”.
E viu o SENHOR que a maldade do homem se multiplicara sobre a terra e que toda a imaginação dos pensamentos de seu coração era só má continuamente” (Genesis 6.5). “... e o SENHOR disse em seu coração: … a imaginação do homem é má desde a sua meninice...” (Genesis 8.21). “... pois já dantes demonstramos que, tanto judeus como gregos, todos estão debaixo do pecado; como está escrito: Não há um justo, nem um sequer. Não há ninguém que entenda; não há quem busque a Deus. Todos se extraviaram, e juntamente se fizeram inúteis. Não há quem faça o bem, não há nem um só” (Ef. 3. 9-12).
O homem é basicamente bom e pode ser aperfeiçoado, dizem todas as religiões do mundo, exceto o Cristianismo. Até os muçulmanos, que se dizem herdeiros da verdadeira fé bíblica, acreditam que o homem nasce puro, até ser contaminado pelo ambiente. Deste erro não escapam sequer ilustres filósofos, como John Locke, para quem o homem era uma lousa em branco (“tábua rasa”), e Jean Jacques Rousseau, que disse “o homem nasceu bom e a sociedade o corrompe”. Não é assim na Teologia Cristã: “Alienam-se os ímpios desde o ventre; andam errados desde que nasceram, falando mentiras” (Salmos 58.3). Como afirma certo provérbio chinês: há apenas dois homens bons, um está morto, o outro ainda não nasceu.
Mas, se é tal a condição do homem, como é possível à Igreja ter esperança? Qual o fundamento dessa esperança? Paulo afirma que “é Cristo em vós, esperança da glória” (Col. 1.27). De fato, Cristo, fundamento da nossa fé, é garantia absoluta do amor de Deus, e da salvação eterna - “Porque os que dantes conheceu também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho, a fim de que Ele seja o primogênito entre muitos irmãos. E aos que predestinou a estes também chamou; e aos que chamou a estes também justificou; e aos que justificou a estes também glorificou... Quem intentará acusação contra os escolhidos de Deus? É Deus quem os justifica!” (Rom. 8. 30-33).
Para alguém como eu, calvinista, tais verbos são como pedras preciosas: conheceu, predestinou, chamou, justificou e glorificou. Repare, Lene, que há uma progressão interrupta! O objetivo do autor inspirado, S. Paulo, é nos mostrar que uma fez escolhidos por Deus nada pode se colocar entre o cristão e Deus. O apóstolo tinha essa verdade tão bem definida que irá concluir o Capítulo dizendo: “Porque estou certo de quem, nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os principados, nem as potestades, nem o presente, nem o porvir, nem a altura, nem a profundidade, nem alguma outra criatura nos poderá separar do amor de Deus, que está em Cristo Jesus nosso Senhor!” (vv. 38,39).
Este é meu único fundamento, na vida e na morte. Este é único fundamento do cristão: Jesus Cristo, Senhor nosso! Se existe algum conforto, alguma esperança, alguma segurança, ela reside no amor gracioso de Deus, feito visível a nós na pessoa de seu Filho, Jesus.
Baseado no Catecismo de Heidelberg, um dos mais importantes documentos teológicos da Reforma; foi redigido por Oscar Oliviano e Zacarias ursino, professores da Universidade de Heidelberg, publicado em 1563, por ordem do príncipe Frederico III, que prefaciou a obra. Originalmente chamado de “Catecismo ou Ensino da Doutrina Cristã”, popularizou-se como Catecismo de Heidelberg.

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