segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Pensamento Reformado

Por Rev. Augustus Nicodemus Lopes (Chanceler da Faculdade Presbiteriana Mackenzie College)
Os puritanos davam muita ênfase na certeza plena da sua salvação. Sabiam que o propósito do homem é “glorificar a Deus e gozá-lo para sempre”, mas entendiam que, enquanto não se alcançasse essa certeza plena de que você era um eleito, não poderia glorificar a Deus de forma total. Quando nós pensamos que uma das coisas que impulsionava a máquina puritana, ou todo o movimento puritano, e os levava àquela ousadia de enfrentar reis e rainhas, lembramo-nos que tudo era decorrente da convicção e da certeza advindas do fato de estarem plenamente seguros de que Deus estava ao lado deles. Portanto, esta questão da certeza da salvação, da certeza da eleição, é fundamental no movimento puritano. Eles achavam que esta era a maior bênção que alguém poderia ter ainda neste mundo. Por isso este tema é importante de ser conhecido.
O puritano Willliam Guthrie, no seu livro, “O Maior Benefício do Crente” (1658) diz: “Qual a principal ocupação do homem neste mundo?” Resposta: “Ter certeza de que participa de Cristo e viver de acordo com isto”. Thomas Brooks, outro puritano famoso, no seu livro “Céu na Terra” de 1654, diz o seguinte: “Estar no estado de graça concede ao homem o céu no futuro; saber que está no estado de graça concede o céu agora e no futuro”.
Esta era a base, portanto, das reformas externas que eles pretendiam fazer na Igreja e no Estado; a certeza que eles tinham de que eram povo eleito de Deus, lhes dava coragem para além das portas da Igreja e enfrentar o mundo aplicando a Palavra de Deus em todos os aspectos da vida.
Os puritanos ingleses, em especial, destacavam e enfatizavam o papel de uma vida transformada nesse processo de se obter a certeza de salvação. É interessante observarmos que neste ponto os puritanos foram mais além e, num certo sentido, até divergiram dos reformadores, especialmente Lutero. Martinho Lutero, por causa da sua ênfase contra o Romanismo, fez uma distinção radical entre fé e obras. Os que conhecem a posição luterana sabem disso. O conceito de Graça e o conceito de Lei, ficou dentro do Luteranismo ao ponto de que os estudiosos do Luteranismo alemão de hoje, como por exemplo, Bultman, olharem para o Velho Testamento, que Lutero considerava como Lei, e não verem qualquer valor no Antigo Testamento por acharem que a dicotomia, a separação, entre Lei e Graça é total. E Lutero dava muita ênfase a esta distinção radical entre fé e obras. Calvino era mais equilibrado. Ele achava que as obras tinham um papel fundamental na vida cristã mas que, de forma alguma, colaboravam para salvação. Sem dúvida, nenhum deles dizia que o homem era salvo pelas obras, mas acreditavam que as obras tinham um papel preponderante na vida do crente.
Os Puritanos concordavam com Calvino que é por meio das obras realizadas através da graça, que os eleitos “fortalecem o seu chamado e, a exemplo das árvores, são julgados por seus frutos [...] não sonhamos com uma fé destituída de boas obras, nem de uma justificação que poderá subsistir sem elas”.
Os puritanos queriam colocar as duas coisas juntas; não porque defendessem salvação pelas obras, como nós iremos ver adiante, mas é que os puritanos estavam lutando num contexto diferente dos reformadores. Os puritanos estavam enfrentando uma Igreja que tinha a sã doutrina; era uma Igreja que tinha vindo da Reforma, mas que havia se tornado tolerante; estavam enfrentando uma geração de hipócritas, pessoas que possuíam a doutrina da Reforma e, porque tinham a doutrina certa, porque vieram da Reforma, achavam que isso bastava. Os puritanos diziam: “de forma nenhuma! ninguém pode ter certeza de salvação se não tiver provas concretas na sua vida; evidências da graça de Deus no seu coração!”.
Nós podemos, então, quase que fazer a seguinte afirmação: enquanto que a preocupação maior da Reforma foi mostrar como uma pessoa podia ser salva, o Puritanismo se preocupava em mostrar como ela saberia que estava salva. Na época em que os puritanos viveram (século XVII), defendiam que a certeza de salvação era o resultado de um encontro pessoal, contínuo e vivo com o Deus da Aliança. Essa ênfase era uma fonte de irritação para muitos que chamavam os puritanos de presunçosos, legalistas e introspectivos, porque olhavam muito para o seu coração, para a sua vida, examinando-se, para verificar as evidências da obra da Graça de Deus, para que então pudessem afirmar que estavam salvos.
1. A relação entre a fé que salva e a certeza de salvação, no movimento puritano.
Quando os puritanos afirmam na Confissão de Fé que a certeza da salvação não faz parte da essência da fé salvadora, estão querendo dizer que uma pessoa pode estar salva e ainda não ter alcançado a certeza de salvação. E alguém pergunta: por que é que os puritanos, então, foram mais além do que os reformadores, neste ponto? Os puritanos ensinavam que a fé ativa, a fé que salva, não é uma atividade intelectual somente, mas ela se centraliza no coração do homem; e que uma fé que não move o coração, uma fé que não move a vontade, uma fé que não muda a conduta, não pode ser uma fé salvadora. Era nesse ponto, então, que os puritanos iam um pouco mais além dos reformadores. O famoso Thomas Goodwin, chamado de “o maior exegeta de todos os tempos, que do púlpito expôs os escritos de Paulo”, diz as seguintes palavras no seu livro “Fé Justificadora” (volume oito das suas obras):
“aquele ato de fé que justifica o pecador é diferente da convicção absoluta de que ele tem a vida eterna, e portanto esta fé pode existir sem a convicção, já que a fé não contém necessariamente uma certeza inabalável inerente em si mesma; quando se afirma que somente os que têm plena e inabalável certeza de salvação são crentes verdadeiros, condena-se uma geração inteira de justos cuja fé, quer seja por causa da fraqueza ou por várias tentações, nunca chegou ainda a atingir um nível inabalável, mas que entretanto apega-se a Cristo de todo coração e caminha obedientemente em Seus mandamentos. O principal ato da fé não é certeza ou convicção plena, visto que a fé reside na vontade do homem e que é pelo consentimento deste que ele se une a Cristo. A fé não reside primariamente no intelecto. Certeza da salvação é o selo que vem confirmar o que a fé fez e portanto vem depois dela”.
Então, isso é o que ensinavam os puritanos, especialmente os puritanos ingleses influenciados por Beza.
A Confissão de Fé da Igreja Presbiteriana ensina exatamente a mesma coisa. A Confissão de Fé é um reflexo da teologia puritana, e eu quero citar aqui o capítulo XVIII no parágrafo terceiro da Confissão de Fé: “Esta segurança infalível”, de salvação, “não pertence de tal modo à essência da fé, que um verdadeiro crente, antes de possuí-la, não tenha de esperar muito e lutar com muitas dificuldades”. Ou ainda o Catecismo Maior na pergunta 81. Pergunta: “Todos os verdadeiros crentes têm sempre a certeza [de salvação,] de que estão agora no estado de graça e de que serão salvos?” Resposta: “A certeza da graça e salvação, não sendo da essência da fé, os crentes verdadeiros podem esperar muito tempo antes de consegui-la”. Os puritanos não negavam que se pode ter a certeza de salvação, claro que eles enfatizavam isso, mas eles estavam reagindo a uma situação, a uma igreja onde a graça era “barata”, onde pelo simples fato de você ser inglês, e, portanto membro da igreja da Inglaterra, era considerado salvo. Os puritanos diziam: “de forma nenhuma! Você tem que primeiro ver as evidências, examinar a sua vidas à luz da Palavra de Deus antes que possa dizer: eu sou um dos eleitos, eu sou um dos salvos, eu tenho a fé verdadeira”.
Outra evidência dessa doutrina puritana está no Catecismo Maior na pergunta 172, onde se vê a pergunta sobre a Santa Ceia e se questiona se uma pessoa, que não tem plena certeza da sua salvação, pode participar deste sacramento. Os puritanos respondem dizendo que seria ideal que tivesse, mas desde que a certeza de salvação não é parte, não é essência, da fé salvadora, então aquela pessoa que ainda tem dúvida, mas que ama a Jesus e deseja andar nos seus caminhos, pode se aproximar da Ceia do Senhor para participar dela para ser fortalecido pelos meios de graça no Senhor Jesus. Era assim que eles viam a questão da participação na Ceia do Senhor.
Estamos enfatizando a descontinuidade entre a questão da fé salvadora e a certeza de salvação que os puritanos faziam, mas ao mesmo tempo eles enfatizavam uma certa continuidade. Aqui é necessária uma explicação. A distinção que eles faziam entre fé que salva e a certeza de que se está salvo não era qualitativa. Não é que as duas coisas fossem diferentes uma da outra, mas sim quantitativa. Em outras palavras: a fé salvadora, a fé inicial que a pessoa exerce em Jesus, é bastante para fazê-lo estender sua mão e receber a oferta de Deus que é Jesus Cristo, e esta fé inicial tem em si mesma, confiança suficiente para dizer: “eu sou um pecador, mas Cristo morreu por mim” e estende a mão e recebe a Jesus. Então existe essa confiança inicial, porém esta fé inicial, esta fé salvadora, ela cresce e amadurece até produzir plena convicção, até produzir absoluta certeza. Eles diziam que esta certeza, ou esta convicção, conquista todas as dúvidas e prevalece contra todas as tentações. Então o alvo maior do puritano, na vida cristã, era crescer na graça ao ponto de atingir esta certeza plena na sua vida, de que era de Cristo e que Cristo era dele.
Não devemos pensar que eles estavam fazendo muita confusão numa coisa tão simples. A diferença é que eles encaravam a questão, de certeza de salvação, de um ponto de vista muito diferente que os evangélicos hoje estão acostumados a encarar, quando pensam o contrário do que ensina a Confissão de Fé de Westminster. Certeza de salvação não vem simplesmente de um ato onde você levanta a sua mão, ou faz uma decisão a favor de Cristo e a partir daí, na mesma hora, lhe é dada certeza de salvação. Os puritanos achariam isso um absurdo, porque você não pode dar certeza de salvação a uma pessoa enquanto aquela pessoa não demonstra na sua vida o resultado da fé, fé ativa. Isso porque eles criam que a fé não era algo do intelecto, mas era centralizada no coração, e se é no coração, deve mover o homem, a suas emoções, a sua vontade, modificar a sua conduta e produzir frutos dignos de arrependimento.
Thomas Brooks mostrou como os puritanos, faziam essa distinção entre fé salvadora e certeza plena, mas ao mesmo tempo dizia que uma cresce e produz a outra. No livro “Céu na Terra”, Thomas Brooks diz o seguinte (numa página ele começa dizendo): “certeza da salvação não faz parte da essência do ser um cristão”, mas logo alguns parágrafos abaixo ele diz: “entretanto a fé a seu tempo, por si mesma se erguerá e progredirá até a plena convicção”. Então, se vê aqui, como os puritanos mantinham os dois lados: a fé inicial é suficiente para nos levar a Cristo, porém ela tem que crescer e progredir até desabrochar em segurança plena. Thomas Goodwin no seu livro, no capítulo sobre Fé Justificadora, diz o seguinte: “no coração do cristão está selado um sussurro secreto da misericórdia da parte de Deus. Eu não afirmo que isso se transforme imediatamente em plena convicção, mas que este sussurro secreto é suficiente para conduzir o coração a Cristo e jamais abandoná-Lo.”
Voltemos outra vez à Confissão de Fé de Westminster, citando agora o capítulo XIV no parágrafo III. A Confissão de Fé diz o seguinte: a fé salvadora “é de diferentes graus: é fraca ou forte, pode ser muitas vezes e de muitos modos assaltada e enfraquecida, mas sempre alcança a vitória, desenvolvendo-se em muitos até à plena segurança em Cristo, que é tanto o Autor como o Consumador da fé.” Ele é o autor, da fé inicial, e é o seu consumador. Ou seja, à medida que esta fé progride e atinge a sua plena consumação, desabrocha na confiança inabalável que os puritanos possuíam e que os capacitava a enfrentar os reis e os exércitos para levar o Reino de Deus avante.
Em resumo, podemos dizer o seguinte: os puritanos faziam esta distinção entre a plena certeza e a confiança inicial da fé, e insistiam que esta certeza inabalável é o alvo maior na vida cristã e que ela cresce a partir do ato inicial da fé; se desenrola a partir daquele momento inicial, e que cada crente pode atingir este alvo, e deve esforçar-se por isso, sabendo que é um pecado não se esforçar para progredir na graça até esta plena certeza.
Vamos mostrar algumas conseqüências na vida prática dos puritanos, que os fazia pensar assim. Os irmãos sabem que há uma conexão indissolúvel entre o que se acredita e o que se pratica. Já que os puritanos criam assim, a sua prática era organizada ou controlada por esta convicção.
Em primeiro lugar, eles não consideravam certeza de salvação como critério para se analisar alguém, para ver se a pessoa era crente ou não. Infelizmente isso é muito comum hoje em dia. Hoje, quando nós queremos evangelizar uma pessoa e não sabemos se ela é crente, a primeira pergunta é: você tem certeza de salvação? Os puritanos jamais fariam esta pergunta usando-a como critério, se uma pessoa era salva ou não. Porque para eles os testes relacionados, os testes da salvação não eram apenas uma confissão, embora isso fosse importante, mas era a vida e o propósito de se seguir a Jesus. Por isso essa pergunta para eles não fazia parte da sua abordagem evangelística em primeiro lugar.
Em segundo lugar, por outro lado, tão logo uma pessoa se convertia, ela era encorajada a prosseguir na vida cristã crescendo até obter a plena certeza, e os puritanos gostavam especialmente de dois textos (eles gostavam da Bíblia toda, mas especialmente de dois textos nessa conexão): Primeiro era Hebreus 6.11: “Desejamos, porém, continue cada um de vós mostrando até ao fim a mesma diligência para a plena certeza da esperança…”, e ainda II Pd.1.10: “Por isso, irmãos, procurai, com diligência cada vez maior, confirmar a vossa vocação e eleição; porquanto, procedendo assim, não tropeçareis em tempo algum”. E esta ênfase da Palavra de Deus em confirmar a nossa vocação e eleição em todo tempo, era também a ênfase deles; eles acreditavam nisso e todo novo convertido era encorajado a isso. Não era dada a certeza de salvação ao novo convertido, mas eles encorajavam a que o novo convertido progredisse, crescesse na sua confiança inicial em Jesus até alcançar esta plena certeza.
Em terceiro lugar, uma outra conseqüência, era que os puritanos advertiam os novos convertidos de que a fé salvadora é sempre acompanhada de santidade de vida; que ela inevitavelmente há de produzir mudanças, ou de produzir evidências, na vida das pessoas; que serão os sinais, as marcas da obra da Graça de Deus e que se a pessoa não as tem, não as porta, não traz consigo estes sinais, não tem como dizer que está salva. Então, a ênfase era em santidade de vida, antes que você pudesse dizer que estava salvo. E também no seu aconselhamento, quando o pastor puritano encontrava alguém que estava em profunda depressão, e que estava incerto do seu relacionamento com Deus, ele não começava dizendo: “você então precisa se converter, se você não tem certeza de salvação você tem que se converter”. Eles não começavam assim. Eles sabiam que a pessoa podia ser um crente verdadeiro cuja fé tinha sido abalada ou diminuída porque negligenciou os meios de graça, negligenciou o estudo da Palavra, negligenciou a oração, negligenciou o atendimento aos cultos, negligenciou ouvir a Palavra de Deus pregada. Estes são os meios chamados “Meios Ordinários”, comuns, através dos quais o Espírito produz a convicção, e se a pessoa os abandona como ela pode vir a ter certeza do seu relacionamento com Deus? Primeiramente, o pastor puritano, o conselheiro puritano, ele examinava como estava a vida devocional daquela pessoa; como estava o seu uso dos meios de graça. Ou então, uma outra coisa que ele podia pensar, é que a pessoa havia cometido algum pecado, que havia de forma especial ferido a sua consciência e entristecido o Espírito Santo. Portanto, a pessoa não podia mais desfrutar daquela alegria, daquele gozo que eram características de alguém que é salvo. Assim ele fazia uma análise, convidava a pessoa a se auto-examinar, a examinar a sua consciência, a sua conduta, procurando aquilo que poderia ser o obstáculo ao crescimento até à plena certeza. Além disso, eles sabiam também que o crente podia ser assaltado por Satanás de forma tão súbita e violenta que a sua fé podia ser abalada. Isso é possível. E então, eles também exploravam esta área.
Eles também acreditavam – isto está inclusive refletido na Confissão de Fé – que Deus para provar o crente em algumas ocasiões, retira a luz da Sua presença. Era o que os puritanos chamavam de “a noite da alma”. Dessa forma a alma do crente entrava na “noite” e, sentindo-se quase que abandonado, perguntava: “meu Deus por que me desamparastes?”. Mas não era nada, era Deus testando seu filho, querendo saber se ele o seguia apenas pelas bênçãos recebidas ou porque O amava. O puritano sabia que existia “a noite da alma”, e também dava valor a isso quando estava aconselhando as pessoas. Sabia também que a pessoa podia ser uma nova convertida que ainda estava querendo compreender a Graça de Cristo, entender plenamente, enquanto a fé amadurecia e lutava contra as dificuldades. Também, o pastor puritano ao aconselhar uma pessoa que não tinha certeza de salvação, sabia também que a razão podia ser que ela não era salva e que precisava, então, deixar os seus pecados, a sua incredulidade, e se converter ao Senhor Jesus, ou então precisava de uma instrução mais clara a respeito do caminho da Graça.
Percebemos assim, como essa ênfase, essa separação que os puritanos faziam entre fé e certeza de salvação, leva-nos a um lugar de mais seriedade quando examinamos um candidato ao batismo, quando evangelizamos, ou quando queremos examinar os outros e dizer se ele é crente ou não. Às vezes isso é necessário. Mas o caminho dos puritanos era por aqui, eles entendiam que tinha de ser uma avaliação da vida do indivíduo, buscando os sinais da operação da Graça de Deus. E eu acredito que isso já é um corretivo para as tendências do evangelicalismo brasileiro, onde uma “graça barata” é oferecida: um Cristo que não faz exigências; uma fé que não muda o coração; uma certeza de salvação que é dada simplesmente porque uma pessoa fez uma decisão, levantou a mão, ou qualquer coisa deste gênero. Não estou negando que uma pessoa pode ser salva assim, pode. Mas o que estou dizendo é que a certeza de salvação não vem do fato de que você atendeu um apelo ou levantou uma mão. Mas, a certeza de salvação é decorrente da sua observação, de você perceber na sua vida os sinais da Graça Salvadora de Deus mudando a sua vida e o seu coração. Essa é a ênfase dos puritanos, na relação entre fé e certeza.
Somos obrigados a falar sobre outra questão muito importante. A relação entre a razão, o intelecto, e a obra do Espírito Santo. Os puritanos faziam isso quando tratavam dessa questão de certeza de salvação. Nós precisamos deixar muito claro aqui um ponto. E não me entendam mal, pois se me entenderem mal vão entender mal os puritanos. E eles agora não podem nem se defender a não ser através dos livros; então leia os seus livros. Os puritanos não diziam que a base da certeza de salvação era a análise que o crente fazia da sua vida. Não, de forma nenhuma. A base e a convicção da salvação, segundo os puritanos, era externa, era a obra de Cristo na cruz do Calvário, que era suficiente para salvar todo aquele que crê, como está revelado na Escritura. Era essa a base, não somente da salvação, mas da certeza.
Mas a questão é: como eu sei que estou salvo? Como eu sei que a minha fé é a fé que salva? Como é que eu sei que de fato participo de Cristo? Os puritanos atacaram essa questão que não era uma questão nova. Essa questão de como é que uma pessoa, um crente, pode conhecer a vontade de Deus era uma questão que vinha ocupando já a Igreja durante muitos séculos. Na época medieval Tomaz de Aquino fez uma dicotomia, uma separação muito grande, entre a capacidade da razão em compreender, analisar, em chegar a uma conclusão e a fé, que era um reino completamente diferente. Havia esta dicotomia. Daí então se fazia a pergunta: de que forma eu sei que estou salvo? É pela minha razão? Eu examinando, verificando as evidências da minha vida, ou fazendo uma comparação, fazendo um cálculo dizendo: “a Bíblia diz que eu sou salvo se eu for assim, eu sou assim, logo eu sou salvo”. É um processo intelectual em que eu chego a conclusão de que estou salvo? Ou é um processo místico, um processo espiritual, quando o Espírito Santo vem, e de forma direta sem nem passar pela minha razão ele testifica no meu coração.
Esse é um conflito que a Igreja vinha debatendo durante muito tempo. Se você ler os puritanos, você vai ver que de vez em quando eles mudam de ênfase. Você vê que alguns puritanos colocam muita ênfase na questão do raciocínio, do intelecto. Eles estavam lutando contra os místicos, contra aqueles monges, contra aqueles falsos piedosos que falavam de um misticismo extraordinário mas que não tinha frutos. O puritano dizia: “Não, não. Você tem que analisar, você tem que ver a sua vida. Use a sua mente. Some um mais um e veja se bate dois, veja se você é crente”.
Quando eles enfrentavam os intelectuais, os hipócritas, que achavam que estavam salvos só porque tinham a sã doutrina, então, a ênfase deles era no testemunho do Espírito Santo. Diziam: “Não, não, você tem que vê se tem o testemunho do Espírito Santo no seu coração, se o seu coração está aquecido, se está mudado, de fato transformado”. Em outras palavras, na lógica puritana da doutrina da salvação não havia qualquer dicotomia, porque eles acreditavam que a plena certeza de salvação decorre de um exame sincero e humilde das evidências internas e externas da sua salvação juntamente com o testemunho interno do Espírito Santo. Ou seja, para eles não havia separação, já que o Espírito Santo opera na mente humana e através da mente humana. E assim nós encontramos esta síntese, esta combinação equilibrada dos puritanos sobre esta questão que havia se levantado na Idade Média.
Cito algum testemunho dos puritanos. John Owen, nas suas obras, no volume 2, dá uma descrição gráfica de como a razão opera juntamente com o Espírito Santo para estabelecer a certeza de salvação. Ele diz: “A alma, pelo poder de sua própria consciência, é trazida diante da Lei de Deus. Lá o homem apresenta o seu caso. Ele argumenta: ‘Eu sou filho de Deus’, e apresenta todas as evidências de sua filiação. Em meio à sua defesa, enquanto ele está diante de Deus argumenta: ‘Eu tenho essas evidências. Na minha vida vejo esses sinais’. Então, o Espírito Santo vem e, através de uma palavra ou de uma promessa, conquista o seu coração com a persuasão consoladora, derruba todas as objeções e confirma que a sua causa é certa”. Assim nós vemos como eles criam nas duas coisas. Ou ainda William Guthrie, outro puritano, escreve: “Certeza é obtida através da seguinte argumentação: quem crê em Cristo jamais será condenado, eu creio em Cristo, logo jamais serei condenado”, e mais “o Espírito Santo testifica sobre esta avaliação e a torna evidente à mente”. Tem que ser as duas coisas. Richard Sibbes no volume um das suas obras diz: “Eu sei que creio porque o Espírito Santo impele a minha alma a isto, porém a forma mais comum de conhecermos o nosso estado diante de Deus é deduzindo a causa a partir dos efeitos”.
Estou enfatizando estas coisas para mostrar como o movimento puritano, as equilibrou e deixou como legado para Igreja esta doutrina que abrange os dois aspectos: a questão do intelecto e a questão do testemunho do Espírito no coração. Isso nos ajuda muito por causa da situação do evangelicalismo brasileiro. Quando por um lado nós temos a tendência ao formalismo: que leva uma pessoa a acreditar que está salva apenas porque é firme doutrinariamente. A essa o puritano diria: “E o seu coração meu irmão? E o testemunho interno do Espírito Santo?”. Por outro lado nós temos o emocionalismo divorciado de uma mente informada. A esse o puritano dizia: “Não, não, você tem que estudar a Palavra, examiná-la, e examinar a sua vida. As duas coisas têm que bater antes de que você diga que você está salvo”. Quero ainda mencionar a Confissão de Fé no capítulo XVIII verso dois. Aqui os puritanos dizem: “Esta certeza não é uma simples persuasão conjectural e provável, fundada numa esperança falha, mas uma segurança infalível da fé, fundada na divina verdade das promessas de salvação, na evidência interna daquelas graças nas quais essas promessas são feitas, e no testemunho do Espírito de adoção que testifica com os nossos espíritos que somos filhos de Deus”. Então, o puritano acreditava que na operação conjunta destas coisas, o crente podia chegar à plena certeza de salvação.
Quero rapidamente tocar num assunto aqui que tem sido motivo de polêmica entre os irmãos que têm começado a conhecer o movimento dos puritanos, a ler sua literatura. O fato é esse: embora os puritanos enfatizassem os dois lados, ou seja, a dedução racional das evidências para se chegar à certeza de salvação; e por outro lado o testemunho direto do Espírito Santo, eles tinham uma predileção pelo testemunho direto do Espírito Santo na alma. Isso eles valorizavam acima de tudo. Era bom ter os dois, mas o testemunho direto no coração do crente junto com a graça, junto com as evidências da graça, era o que eles valorizavam mais. Essa ênfase estava, num certo sentido, perdida, mas quem começou a chamar a atenção para este aspecto do movimento puritano foi Dr. Martyn Lloyd-Jones, e eu recomendo aos irmãos especialmente o seu comentário em Romanos 8:16 (Editora PES) e Efésios 1:12-14. Quem não tem adquira, porque ali você vai encontrar uma exposição clara desta ênfase dos puritanos sobre o testemunho direto do Espírito no coração. Ou ainda aquele livro “Avivamento” em alguns capítulos.
Quero ler aqui o testemunho de alguns comentaristas puritanos em Romanos 8:16 e Efésios 1:3. Romanos 8:16: “O próprio Espírito testifica com o nosso espírito que somos filhos de Deus.” William Guthrie comentando este texto diz o seguinte: “Existe uma comunicação do Espírito de Deus que algumas vezes é concedida a alguns do seu povo, que vai além do testemunho acerca da filiação divina em Romanos 8:14″. Em Romanos 8:14, lemos assim: “Pois todos os que são guiados pelo Espírito de Deus são filhos de Deus.” então, pode-se dizer, que é esse primeiro passo. Se você é guiado pelo Espírito, e tem as evidências desse andar no Espírito, então você chega à conclusão de que é salvo. E Paulo vai mais além. No verso dezesseis, segundo William Guthrie, Paulo está agora falando de um outro nível de certeza, quando Paulo diz que o Espírito testifica com o nosso espírito que somos filhos de Deus. Então ele continua: “É uma manifestação gloriosa de Deus à alma, derramando seu amor no coração, é algo que se percebe melhor sentindo do que descrevendo. Não é uma voz audível, mas é um raio de glória enchendo a alma da presença de Deus; do Deus que é luz, vida, amor, e liberdade. Ó quão gloriosa é esta manifestação do Espírito! A fé se eleva a uma convicção plena tal, que você se vê diante do próprio Deus! Esta graça não é dada a todos os crentes; muitos passam seus dias em tristeza e temor”. Eles acreditavam, então, na soberania de Deus em conceder esse testemunho direto, esse testemunho íntimo à alma do crente que era além da certeza normal que se obtém através dos meios de graça, e eles davam muito valor a isso.
Ou ainda Richard Sibbes, no livro “Uma Fonte Selada”, ele diz o seguinte:
“Acontece freqüentemente que nossas almas, apesar de santificadas, não conseguem resistir às súbitas tentações, sutis e fortes. Deus, então, nos adiciona do seu Espírito. A sensação de culpa sempre vence o testemunho dedutivo de que fomos salvos e santificados”.
Preste bem atenção. Sibbes está dizendo que esta certeza de salvação que vem da nossa dedução, do exame, do fato de que eu sou santo, que eu deixei disso ou deixei aquilo outro, que eu tenho vontade de ler a Bíblia, que eu tenho vontade de orar; essa análise que você faz da sua vida e a conclusão a que você chega, não é suficiente para resistir a determinadas tentações; “portanto o testemunho direto do Espírito se faz necessário para testificar do amor do Pai por nós. Através desse testemunho o coração é animado e confortado com gozo indizível”. Ou seja, nós chegamos à conclusão da nossa salvação através dos meios dedutivos, examinando, olhando. Mas isso às vezes é insuficiente para as tentações, para os ataques do diabo, mas existe então, esta certeza que nos é comunicada pelo Espírito diretamente ao nosso coração, como diz Romanos 8:16. É essa certeza, então, que dissipa toda dúvida, que nos liberta, que nos enche de gozo. É isso que nos diz o puritano Richard Sibbes.
Veja ainda o que diz Thomas Goodwin, expondo Efésios 1:13:
“Existe uma luz que vem e conquista a alma humana e lhe assegura que ela é de Deus e que Deus é dela, e que Deus o ama eternamente. É uma luz além da fé comum; é a coisa que chega mais próxima ao gozo do céu; aqui na terra é o máximo que podemos ter; é a fé elevada à sua máxima potência acima do nível comum; é o amor soberano de Deus vindo de encontro da alma do eleito”.
Vou narrar apenas duas experiências dos puritanos nesse sentido. Uma é muito conhecida, é de John Flavel, um puritano que escreveu vários livros e foi descrita por Isaac Watts. Ele diz que esse puritano, John Flavel, estava de viagem a cavalo, quando de repente Deus começou a tratá-lo de uma forma bem íntima. Isaac Watts descreve assim, resumidamente, a experiência:
“Os pensamentos de Flavel começaram a elevar-se cada vez mais altos, como as águas na visão de Ezequiel até se tornarem como uma inundação. Tal era a disposição da sua mente, tal gosto das alegrias celestiais, e tal a certeza plena da sua participação no céu que ele perdeu totalmente a sensação que estava neste mundo, bem como ficou sem qualquer outra preocupação. Durante horas a fio ficou sem saber onde estava, como alguém que acorda de um sono profundo. A alegria do Senhor inundou seu coração de tal forma que durante muitos anos ele chamou aquele dia: ‘Um dia do céu sobre a terra’, e que aprendeu mais sobre o céu naquele dia de que com todos os seus livros”.
Era isso que o puritano buscava, essa plena convicção, essa certeza absoluta que era mais do que uma dedução normal e racional, daquilo que nós estamos vendo em nossa vida.
Há também o exemplo (há muitos outros mas eu selecionei apenas estes), de um puritano chamado João Howe, que também é narrado por Isaac Watts. Quando ele morreu encontraram escrito numa página da sua Bíblia: “O que eu senti pela misericórdia do meu Deus, no dia 22 de outubro de 1704, ultrapassa meu poder de descrição. Naquele dia experimentei um agradabilíssimo derreter do meu coração com lágrimas jorrando dos olhos e alegria por Deus ter derramado o Seu amor no coração dos homens, especialmente porque meu próprio coração havia sido tocado desta forma”. A experiência tinha sido tão extraordinária, e única, que ele escreveu na página da sua Bíblia, registrando-a para a posteridade até os dias de hoje. E assim vemos este desejo dos puritanos de ter uma certeza, mas que fosse dada pelo testemunho do Espírito no seu coração.
Deixe-me fazer aqui algumas observações necessárias. Os puritanos não encaravam esta forma de se obter plena certeza, que eu acabo de mencionar, como sendo normativa. Isso não acontece todo dia. Eles não encorajavam as pessoas a buscarem experiências místicas. De forma nenhuma. Era algo desejável, porém era algo que era dado, era algo que era da soberania de Deus, e portanto eles procuravam deixar na mão de Deus. Eles não desprezavam o processo dedutivo normal, desde que assistido pelo Espírito. Era o normal, e todos deviam buscar a certeza de salvação pela fé na obra de Cristo e pelo exame de suas vidas, pela evidência que foram tocados pela graça. E eles exerciam muita cautela quando se tratava de experiências místicas. Em geral eles rejeitam revelações extraordinárias e sobrenaturais. Eu não tenho tempo de entrar na análise deste ponto. E inclusive está na própria Confissão de Fé de Westminster. Para que o crente tenha certeza de salvação ele não precisa de uma revelação extraordinária. A Confissão de Fé enfatiza isso. Quando ela vinha, o puritano exigia que ela tinha de ser compatível com as outras evidências. Ou seja, um hipócrita não podia sentir esse tipo de coisa. Mas se acontecia na vida de um santo, na vida de um homem que andava com Deus, um homem que tinhas as evidências da graça, era genuína.
Portanto nós acreditamos que aqui há um equilíbrio que pode ser muito útil também à Igreja brasileira, quando vivemos numa época em que há um misticismo, há uma ênfase tão grande em buscar experiências com Deus. Os puritanos acreditavam que Deus pode dar experiências (não revelacionais), e eles eram gratos e felizes a Deus quando Deus dava, mas eles encaravam como sendo algo da soberania de Deus, que não era algo que era da vida diária e que o crente na sua vida normal é guiado pela Palavra, pelo exame da sua vida em análise com a Palavra de Deus e que quando essa experiência vinha ela tinha que ser atestada por uma vida santa, de acordo com a Palavra de Deus, senão era misticismo, era coisa do maligno ou coisa então da psicologia humana. Percebem como essa ênfase é importante para os nossos dias?
Finalmente, apresento a relação entre a obediência e certeza de salvação. Eu já falei que os puritanos destacavam a importância de uma vida transformada para que uma pessoa viesse a assegurar-se da salvação. Era uma ênfase que eles davam na obediência que o crente tem de exercer praticando as boas obras. Essa ênfase sempre foi mal interpretada. Por exemplo, o crítico moderno dos puritanos, Perry Muller, ele diz o seguinte (os puritanos têm muitos críticos até o dia de hoje): “Se é Deus quem salva por que é que os puritanos ficam nos perturbando com essa exigência de obediência?” Se os puritanos insistiam que a salvação era pela graça, como os Reformadores, por que é que eles ficavam citando “que tem que obedecer”, “tem que fazer boa obra”? Por quê? E esse crítico não podia entender. Ora, não é somente esse crítico, mas muitos outros têm acusado os puritanos de serem “prisioneiros de um sistema teológico legalista”. Que embora fossem herdeiros da Reforma mesmo assim eram legalistas, e isso tem assustado muita gente que pensa que puritanismo sempre descamba no legalismo. Ou então de que os puritanos eram introspectivos, e que punham muita ênfase apenas no auto-exame. A imagem que fazem dos puritanos de que eram pessoas sérias, contritas, abatidas, mortificadas, ascetas, com nariz grande, pode ser vista nos seus retratos no livro “Os Puritanos – Origens e Sucessores” (PES).
Mas eles eram mal entendidos (e ainda são) por causa da ênfase que davam na necessidade de obediência e de santificação. Então, qual o lugar da obediência na teologia puritana, especialmente com relação à certeza de salvação?
Vamos voltar outra vez, então, e fazer uma comparação com os Reformadores. Enquanto que os reformadores, especialmente Lutero, associavam a certeza de salvação com a justificação, ou seja, a certeza de salvação está ligada diretamente à justificação, ao passo que os puritanos, influenciados por Beza, diziam que a certeza de salvação estava ligada à santificação. Não, não está ligada à justificação não. Ser salvo pela graça é uma coisa, outra coisa é ter certeza de salvação. Ela está ligada à santificação. Então se nós não entendermos esse ponto, não vamos entender a ênfase dos puritanos na necessidade de obediência, na necessidade de santidade de vida. A crítica que se faz aos puritanos a essa altura é esta: já que a certeza de salvação está ligada à santificação, quando é que o crente vai ter certeza de salvação? Ele nunca poderá chegar à plena certeza já que a santificação é um processo, alguém pode dizer. Mas a resposta do puritano era esta: Não estamos dizendo que você tem que ser plenamente santificado, para você ter certeza de salvação. Estamos dizendo é que a partir do momento em que você tem os sinais externos mínimos e básicos da operação da graça de Deus, você passa a ter certeza de salvação. A resposta é essa. É aqui, então, o lugar da obediência à Palavra de Deus dentro da teologia puritana. Nós podemos dizer que é um círculo, e esse círculo está expresso na Confissão de Fé. No capítulo XVI, parágrafo 2: “boas obras, feitas em obediência aos mandamentos de Deus, são o fruto e as evidências de uma fé viva e verdadeira;…”. Então os puritanos sabiam que a fé produz obras vivas e verdadeiras. Continua: “por elas”, por estas obras, “os crentes manifestam a sua gratidão e robustecem a sua confiança (fé)…”. Então diziam: A fé produz obras e as obras robustecem a fé, é um círculo. Uma coisa leva à outra. Uma e outra, como diziam os puritanos, as bênçãos de Cristo se fortalecem mutuamente no coração do crente. Funcionava desta maneira.
Em resumo o ensino da Confissão de Fé é este: a plena certeza é privilégio daqueles que desejam obedecer a Cristo. Para ter certeza plena de salvação, precisamos saber que essa certeza é um privilégio daqueles que querem andar no caminho de Jesus. As boas obras, feitas como resultado dessa obediência vem fortalecer a plena segurança da salvação. Por outro lado, a obediência que se traduz em obra, já é fruto da convicção e da segurança de salvação que a pessoa possui.
A essa altura é importante fazer um comentário sobre essa questão do auto-exame, do exame íntimo que está relacionado perfeitamente com esta questão. Estudos recentes sobre o puritanismo têm entendido que essa relação entre reflexão, exame interno, e obras, pode ser traduzida como sendo uma espiral viva, como uma espiral crescente. Primeiro o puritano se examina, reflete à luz da Escritura sobre sua vida. Ele procura evidências na sua vida da operação da graça de Deus; coisas como quebrantamento, desejo de fazer a vontade de Deus, temor a Deus, desejo de buscar Sua Glória, boas obras, amor ao próximo, zelo pelo nome de Deus, ódio ao pecado. Então eles examinavam procurando essas coisas que eram a evidência da operação da graça de Deus no seu coração.
Eu quero mencionar o puritano Thomas Brooks no livro “Céu na Terra”: “segurança da salvação é um ato reflexo da fé”, ou seja, é a fé em reflexão, é a fé se examinando, “é um discernimento experimental de que se está em estado de graça. Esta certeza provém de observar em si próprio as evidências especiais, peculiares e distintas da graça de Cristo”. Esse era o ensino. A fé tem essa capacidade de refletir, tem essa capacidade de se examinar. Essa era a primeira parte da espiral. Depois de se examinar à luz da Escritura e debaixo do poder do Espírito Santo, que era alguma coisa que os puritanos enfatizam tremendamente, o passo seguinte era a ação. E nós sabemos como eles iam para a ação. Mas iam para a ação porque tinham feito um auto-exame. Eles sabiam que eram povo de Deus, tinham aquela certeza, demonstrada pelas evidências e pela Palavra. E a mecânica era essa: ação à reflexão, ação à reflexão, ação… e assim numa espiral crescente que acompanhava o puritano a sua vida toda, a fé e a certeza de salvação se fortaleciam, à medida em que ele crescia na graça e no conhecimento do Senhor Jesus Cristo. Era assim que funcionava. Era algo dinâmico. Quero aplicar tudo isso para a Igreja de hoje.
Quero dizer duas coisas antes;
1) Primeiro, é minha convicção de que os puritanos ingleses nesse aspecto capturaram profundamente o ensino Bíblico. Eu gosto dos puritanos, não porque eles são do final do século XVI, ou do século XVII, e sim porque eles acertaram, porque eles, dentro da História da Igreja, fazem parte daquelas gerações, daqueles modelos históricos de cristianismo que melhor refletem a Escritura Sagrada em muitos aspectos. Eu sei que eles cometeram erros. Sei perfeitamente disso. Posso até dizer para os irmãos em que eu não concordo com eles, mas acredito que, na grande maioria, na sua grande parte, aqueles homens de Deus nos expuseram a Palavra de Deus de forma clara e concreta, e este é um dos pontos em que eles estão certos. É uma exegese certa da Escritura, no meu entender.
2) Por outro lado à medida em que entendemos esta questão, precisamos ser cautelosos porque o e o que aconteceu foi que eles colocaram ênfase nos dois lados (reflexão e ação). Quando esta ênfase nos dois lados era apresentada, notamos o quanto os puritanos eram equilibrados. As duas coisas andavam juntas. Quando, na fase final do puritanismo, o lado da graça foi abandonado, caíram no legalismo, perderam o equilíbrio dessa espiral, deixaram o lado da ação e o lado da confiança em Deus e se tornaram reflexivos demais. O puritanismo virou símbolo apenas de auto-exame e de reflexão; aquela pessoa introspectiva que é, infelizmente, a figura que ficou até o dia de hoje. Mas não foi isso que caracterizou o movimento, isso foi um desvio do puritanismo. Nem é puritanismo! Então à medida que queremos aprender com eles, lembremo-nos que temos que manter em equilíbrio estas coisas. Em que isso pode servir à igreja brasileira?
Primeiro, a doutrina puritana sobre a certeza de salvação pode nos ajudar a corrigir a influência da Igreja Católica que diz que a certeza de salvação é impossível nesta vida. Os puritanos diziam: “De forma nenhuma! A obra completa de Cristo, e a obra do Espírito em nós, torna esta certeza possível. É pecado não buscar esta certeza depois do que Cristo fez na cruz do Calvário, depois que o seu Espírito foi derramado no dia de Pentecostes”. Isso nos ajuda a combater esta tendência.
Em segundo lugar, nos ajuda também, como já mencionado, a corrigir a influência do evangelho barato, que oferece uma certeza de salvação com base em decisões feitas em resposta a apelos (por decisão), sem que haja sinais que podem ser observados de arrependimento, de mudança, de fé verdadeira. Os puritanos diriam: “Certeza de salvação depende da santificação. É necessário crescer na graça, no auto-exame, na percepção da graça de Deus no coração”. E isso, eu acredito, é muito importante e prático, especialmente na hora em que vamos examinar os candidatos à Profissão de Fé.
Em terceiro lugar, essa doutrina puritana pode nos ajudar contra a influência do legalismo proveniente, infelizmente, de alguns círculos pentecostais que torna a certeza de salvação inatingível, porque é baseada no rigorismo do cumprimento da Lei. Ou então baseada em evidências legalistas. O puritano diria: “A certeza de salvação não se baseia na auto-avaliação, como sendo algo pessoal do crente, mas na percepção da graça de Deus agindo em seu coração. Não tem nada de legalismo”.
E por fim, em quarto lugar, acredito que é uma influência, um corretivo saudável para o misticismo que existe hoje inundando as igrejas (inclusive presbiterianas) que esquecem que a prioridade do homem é o seu relacionamento pessoal com Deus. O puritano diria: “O fim principal do homem é glorificar a Deus, e isso através da obediência que parte de um coração seguro da sua salvação”.
Como estamos nós? Quais são as evidências, quais são as bases que você tem na sua vida para crer que faz parte dos eleitos de Deus? Qual a evidência que você apresenta diante de si mesmo e diante de Deus para reivindicar, se podemos usar esta palavra, de forma limitada, ou pelo menos para se apresentar como um candidato à salvação eterna que Cristo nos oferece? Eu lhe asseguro, pela Palavra de Deus, e com isso nós nos juntamos aos puritanos, que se nós não tivermos na nossa vida as evidências da obra da graça de Deus, de uma fé salvadora sediada no coração, que move o coração, que move a vontade, nós não temos como dizer que estamos salvos.
Digo também uma palavra de conforto aqui, ao crente verdadeiro, e que luta para ter esta certeza. Quero encorajá-lo a prosseguir. Porque é vontade de Deus que você encontre plena certeza. Continue crescendo nessa espiral, analise a sua vida, faça uma reflexão do seu coração, da sua alma, da sua conduta à luz da Palavra de Deus. Corrija o que tem que ser corrigido. Abandone o que tem de ser abandonado. Obedeça a Deus, continue nesse caminho. Volte e examine o seu coração outra vez e nesse processo você chegará à plena certeza de salvação.
Que Deus nos ajude, e que possamos, com esse corretivo que vem da Palavra de Deus, mediada pelo modelo puritano, ser abençoados, crescer e ter um cristianismo equilibrado no Brasil nos dias de hoje.
Augustus Nicodemos Lopes

Nenhum comentário:

Postar um comentário