sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Da suposta “Teonomia” nos Símbolos de Fé de Westminster

Uma das coisas que mais me irrita num debate são os argumentos puramente eisegéticos de pessoas que se acham exegéticas. A enorme capacidade que elas tem de distorcer por completo a mensagem básica de um texto simples e ainda assim querer sustentar nele as suas utopias teológicas me assusta! Afinal de contas, é sempre muito mais fácil atribuir a um texto nossas próprias ideias (eisegese) do que se esforçar para extrair a ideia que o seu autor tinha em mente quando o escreveu (exegese). E foi justamente uma baita duma eisegese o que fez o Luciano, blogueiro do Ministério Cristão Apologético (MCA). Recentemente ele acusou o Helder Nozima, que é pastor presbiteriano, de ferir os Símbolos de Fé de Westminster – quais sejam a Confissão de Fé de Westminster (CFW), o Catecismo Maior (CM) e o Breve Catecismo (BC) –, adotados pela Igreja Presbiteriana do Brasil (e por outras ao redor do mundo), pelo simples fato do Helder ter discordado das posições ditas “teonômicas” de uma minoria extremada entre nós, aliancistas, que pretende a todo custo cristianizar o mundo até o retorno de Cristo (a velha ilusão pós-milenista) por meio da aplicação literal das leis cívicas veterotestamentárias ao século XXI. Como presbiteriano que sou, me proponho a esclarecer o ponto quanto aos símbolos de fé de minha denominação, não apenas em solidariedade ao Helder e ao presbiterianismo sóbrio que defendemos, mas sobretudo em favor da veracidade dos fatos.
O blogueiro do MCA começa a se contrapor ao Helder usando o Catecismo Maior de Westminster (CM). Sua intenção era a de “ajudar” o blogueiro do 5 Calvinistas “quanto à criminalização da homossexualidade” (tema que gerou toda a discussão), a qual ele acusou nosso calvinista de minimizá-la. Inicialmente, o blogueiro do MCA se utiliza da pergunta e resposta 191 do CM.
Pergunta 191: O que pedimos na segunda petição?
Resposta: Na segunda petição, que é: “Venha o teu reino” – reconhecendo que nós e todos os homens estamos, por natureza, sob o domínio do pecado e de Satanás[1] –, pedimos que o domínio do mal seja destruído[2], o Evangelho seja propagado por todo o mundo[3], os judeus chamados[4], e a plenitude dos gentios seja consumada[5]; que a igreja seja provida de todos os oficiais e ordenanças do Evangelho[6], purificada da corrupção[7], aprovada e mantida pelo magistrado civil[8]; que as ordenanças de Cristo sejam administradas com pureza, feitas eficazes para a conversão daqueles que estão ainda nos seus pecados, e para a confirmação, conforto e edificação dos que estão já convertidos[9]; que Cristo reine nos nossos corações, aqui[10], e apresse o tempo da sua segunda vinda e de reinarmos nós com ele para sempre[11]; que lhe apraza exercer o reino de seu poder em todo o mundo, do modo que melhor contribua para estes fins[12].
Referências bíblicas:
[1] Ef 2.2,3; [2] Sl 68.1; Ap 12.9; [3] 2 Ts 3.1; [4] Rm 10.1; [5] Rm 11.25; Sl 67.1-2; [6] Mt 9.38; [7] Ef 5.26-27; Ml 1.11; [8] 1 Tm 2.1,2; Is 49.23; [9] 2 Co 4.2; At 26.18; 2 Ts 2.16-17; [10] Ef 3.14,17; [11] Ap 22.20; [12] 2 Tm 2.12; Is 45.3-4; Is 64.1-2.
Negrito do MCA.
Sinceramente, até agora não entendi o que tem a ver a manutenção da igreja pelo magistrado civil (negritado pelo MCA) com a criminalização da homossexualidade. É bom que se diga, antes de tudo, e também para dirimir possíveis mal entendidos, que o CM não está sugerindo que a igreja seja mantida financeiramente pelo Estado, visto que a referência bíblica usada para esta questão é o texto de 1 Timóteo 2.1-2, no qual Paulo exorta os crentes a orarem em favor dos seus respectivos governantes, “para que vivamos vida tranquila e mansa, com toda piedade e respeito”, o que implica dizer que a delegação de Westminster tinham em mente o direito que cada cidadão tem à livre profissão de fé, bem como a não interferência do Estado nessas questões (cf. CFW XXIII.3). Mas talvez o blogueiro do MCA não tenha percebido isso (sim, ele omitiu essa referência bíblica do CM em eu blog), e ainda teve a empáfia de pedir pro Helder prestar atenção se é assim mesmo que ele ora pela vinda do Reino de Deus (quanto à segunda petição da Oração Dominical)! Ora, para que o CM se encaixasse melhor no esquema (e na oração!) pós-milenista/teonomista, seria mais interessante se o Luciano tivesse negritado outras palavras. Vou socorrê-lo aqui. Ele bem que poderia ter negritado o trecho onde diz “pedimos que o domínio do mal seja destruído, o Evangelho seja propagado por todo o mundo, os judeus chamados, e a plenitude dos gentios seja consumada” – o que faria do CM… teonomista? Claro que não! Pelos seguintes motivos:
  1. O sistema corrupto (o “domínio do mal”) no qual vivemos, instaurado em decorrência do pecado e da influência das hostes malignas sobre este mundo, só será totalmente destruído por ocasião da Segunda Vinda de Cristo, quando a ordem por fim será devolvida à criação; e
  2. Desejar que o Evangelho seja propagado por todo o mundo não é o mesmo que desejar que todos o obedeçam, visto que tal coisa jamais acontecerá (a menos que o universalismo seja verdade). Além do quê, os teólogos de Westminster citam em seguida “os judeus chamados” e “a plenitude dos gentios consumada”, apontando para a universalidade do alcance do Evangelho e sua consumação escatológica, e não à suposta obediência das nações à sua mensagem; o que implica dizer que
  3. Está derrubada a pretensão “confessional” do esquema pós-milenista/teonomista!
Depois, o referido blogueiro ainda vai fazer uso da pergunta 190 do CM.
Pergunta 190: O que pedimos na primeira petição?
Resposta: Na primeira petição, que é: “Santificado seja o teu nome” – reconhecendo a inteira incapacidade e indisposição que há em nós e em todos os homens, de honrar a Deus como é devido -, pedimos que ele, pela sua graça, nos habilite e nos incline, a nós e aos demais, a conhecê-lo, confessá-lo e altamente estimar, a ele e a seus títulos, atributos, ordenanças, palavras, obras e tudo aquilo por meio do qual ele se dá a conhecer; a glorificá-lo em pensamentos, palavras e obras; que ele impeça e remova o ateísmo, a ignorância, a idolatria, a profanação e tudo quanto o desonre; que pela sua soberana providência dirija e disponha tudo para a sua própria glória.
[Negrito do MCA].
Quanto ao trecho negritado pelo Luciano, entendo porque ele não foi mais seletivo, como lhe sugeri no parágrafo anterior. É porque se ele admitisse que é somente “pela sua graça [de Deus] que os homens são habilitados a se inclinar, conhecer, confessar e altamente estimar a Deus; seus títulos, atributos, ordenanças, palavras, obras e tudo aquilo por meio do qual Ele se dá a conhecer; e a glorificá-lO em pensamentos, palavras e obras, então o esquema pós-milenista/teonômico da implantação de uma lei que Cristo já aboliu na cruz (sim, as leis civis!) mais uma vez estaria destruído.
Embora o Luciano não cite diretamente a CFW, vale a pena incluí-la aqui. Será que ela endossa o tal “teonomismo” de alguns pós-milenistas? Vejamos o que ela diz no capítulo que trata especificamente da Lei de Deus (XIX.4):
A esse mesmo povo, considerado como um corpo político, Deus deu leis civis, que deixaram de vigorar quando o país dele deixou de existir, e que agora não se obriga a ninguém além do que exige a sua eqüidade geral.
Êx. 21 e 22.1-29; Gn. 49.10; Mt 5.38-39.
Não é preciso ser nenhum expert em símbolos de fé para que se perceba que aqui a CFW, em vez de apoiar, claramente rejeita a continuidade dessa tal “teonomia” pregada pelos aliancistas extremos. Nas palavras da bancada de Westminster, as leis civis “deixaram de vigorar” quando o Estado teocrático de Israel se findou. Particularmente interessante é a referência que aqueles distintos teólogos fizeram ao texto de Mateus 5.38-39, onde Jesus, em vez de aprovar a retaliação (que era uma permissão que a Lei concedia sob certas circunstâncias), exalta o princípio da auto-renúncia e do amor ao próximo (que era, na realidade, o grande mandamento – ou a essência – da Lei), tendo em vista que os escribas e fariseus queriam fazer uso de tal permissão para legitimar a vingança pessoal (o que chamamos atualmente de “justiça com as próprias mãos”), em vez de entregarem o caso ao Estado, a quem Deus confiou a espada (Estado este que por sua vez deveria julgar os casos de acordo com a proporcionalidade do crime cometido, sem ser demasiadamente severo ou indulgente).
Ouvistes que foi dito: Olho por olho, dente por dente. Eu, porém, vos digo: não resistais ao perverso; mas, a qualquer que te ferir na face direita, volta-lhe também a outra [Mt 5.38-39].
Já que foi citado algo sobre o dever do Estado, que diz a CFW quanto a isso? Vejamos (cap. XXIII.3):
[...] é dever dos magistrados civis proteger a pessoa e o bom nome de cada um dos seus jurisdicionados, de modo que a ninguém seja permitido, sob pretexto de religião ou de incredulidade, ofender, perseguir, maltratar ou injuriar qualquer outra pessoa [...].
Certos teonomistas devem estar extremamente decepcionados com o posicionamento daquela delegação que se reuniu por quase seis anos (de julho de 1643 a fevereiro de 1649) na Abadia de Westminster, na Inglaterra. “Sob pretexto de religião” (ou da falta desta), aqueles brilhantes teólogos jamais estimulariam a ofensa, a perseguição, o maltrato ou a injúria a quem quer que fosse, mas certamente lutariam para que a reputação (“o bom nome”) de cada indivíduo fosse protegida, bem como seus direitos. Não estou sugerindo que os teonomistas ofendem, perseguem, maltratam ou injuriam os pecadores, mas apenas lhes mostrando que a CFW se mostra muito mais favorável a um Estado Democrático do que a um Estado Teocrático (sugiro a leitura de todo do Cap. XXIII), visto que a teocracia como a queremos só virá em toda sua plenitude quando Cristo estabelecer de uma vez por todas o Seu Trono de Glória por ocasião daquele Grande Dia. Certamente não é ruim desejar a Teocracia (quem não deseja a parousia?), mas penso que seja muito mau querer antecipá-la e impô-la, e ainda mais por meios impróprios, para não dizer obsoletos! E isto certamente derruba de uma vez por todas o esquema utópico daqueles que querem descer o céu à força – dos pós-milenistas e de sua ala mais radical, os tais teonomistas.
Mas não me espanta que certos indivíduos dentre eles se mostrem incoerentes, não. Confrontado pelo Helder em relação ao contexto histórico em que se deu a Assembleia de Westminster, o blogueiro do MCA, em vez de dar uma resposta digamos “apologética” (pra valer a pena o nome do blog), respondeu dizendo que “não vou dar […] razões do que escrevi acima sobre o CM”. Impressionante o quanto ele é apologético, não é mesmo? Mais impressionante ainda foi o apoio que ele recebeu de alguns Internautas Cristãos, que lhe disseram: “Luciano, você está em concordância com a Escritura e com a fé cristã histórica e reformada. Continue firme no SENHOR”. Escritura? Fé cristã histórica e reformada? Por favor, caros irmãos, mostrem-me qual Escritura, qual fé, qual cristianismo, qual História, qual calvinismo! Eu também quero saber! A não ser que de fato isso tudo que vocês pregam não exista na tradição reformada dos puritanos de Westminster, como me esforcei para mostrar aqui. Sinto muito, mas penso que não foi dessa vez que os nossos valiosos símbolos de fé reformados endossaram a ilusão pós-milenista/teonomista de vocês. E penso que não o farão nunca!
Soli Deo Gloria!
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P.S: O Breve Catecismo não entrou na discussão porque (1) não foi citado pelo Luciano e (2) porque é quase que um resumo do Catecismo Maior, o que tornaria sua análise puramente redundante.

2 comentários:

  1. Graça e paz ao irmão... sou teonomista e não sou pós-milenista. Gostaria que o irmão corrigisse as afirmações mencionadas no Artigo, se fosse possível.
    Ah! quanto ao irmão Luciano, ele, de fato, cometeu alguns equívocos no artigo do Helder, todavia, o irmão poderia dar algumas outras olhadas no blog para avaliar algumas das acusações feitas contra o Luciano!

    http://mcapologetico.blogspot.com/2011/02/resumo-da-perspectiva-teonomica-da-lei.html

    Ah! propósito... o irmão já leu alguma obra que trata especificamente da doutrina TEONOMISTA (Desvenciliada do Pós-milenismo) para criticá-la desta forma?

    Que o SENHOR JESUS nos conduza à Verdade!

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  2. Ah! já ia me esquecendo... ele também postou uma resposta a um blogeiro que fez uma caricatura similar, é bom avaliar!

    http://mcapologetico.blogspot.com/2011/02/teonomia-insensatez-ou-verdade-resposta.html

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