quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Pneumatologia: Cessacionalismo e Continuísmo

Cessacionismo x Continuísmo: a Grande (e confusa!) Batalha

Se o debate entre cessacionistas e continuístas se resumisse apenas a questões terminológicas, talvez a gente tirasse de letra. Mas não é. Tudo bem. Vamos considerar por ora as terminologias. O que configura exatamente as duas perspectivas? Talvez a resposta mais convencional seja a de que o cessacionista é aquele que crê que certos dons espirituais e extraordinários (miraculosos) operaram na igreja somente na era apostólica, e que os mesmos cessaram definitivamente até o final do primeiro século; ao passo que o continuísta é aquele que crê que todos os dons existentes no Novo Testamento, miraculosos ou não, ainda continuam sendo derramados pelo Espírito até que Cristo volte. Satisfeitos? Eu não. Aliás, tenho enormes dificuldades com certas terminologias. Em muitos casos elas não dizem muita coisa.
[Onde começa um e onde termina o outro?]
Apesar do “x” que coloca as duas perspectivas em extrema oposição no título deste post, penso que seja mais razoável falarmos em “cessacionismo e continuísmo”. Isto porque, em minha opinião, todo cessacionista é um continuísta potencial, e vice-versa. Antes dos “fiscais da ortodoxia alheia” (adorei essa, Gaspar!) me acusarem de “traidor da Confissão” e coisas do tipo, vou dar aqui um belo exemplo daquilo que eu chamaria de “continuísmo cessacionista”; exemplo este baseado no conceito que nós, reformados em geral, temos da tarefa da pregação. Veja o que diz Paulo Anglada, um dos mais respeitados teólogos reformados do Brasil:
A autoridade da pregação no Novo Testamento se fundamenta na comissão do pregador e depende da sua fidelidade à mensagem. Algumas passagens do Novo Testamento e a própria terminologia empregada indicam que, na qualidade de arauto, o pregador é um porta voz de Cristo, que sua pregação deve ser recebida como Palavra de Deus, e sua voz equiparada à voz de Cristo. […] Deveriam esses textos [no caso, Mt 10.17;20; 28.20; 2 Co 2.17; e 1 Ts 2.9,13] ser interpretados como casos particulares, relacionados apenas à inspiração apostólica; ou em termos mais amplos, com relação à autoridade da pregação dos ministros da Palavra? Algumas passagens [no caso, Lc 10.16; Rm 10.14; e  Hb 1.1-2; 2.1-3; 3.7,8,15; 4.7; 12.25; 13.7-8] parecem apontar para a segunda possibilidade.
(ANGLADA, Paulo. Introdução à pregação reformada – uma investigação histórica sobre o modelo bíblico-reformado de pregação. Knox Publicações, 2005. Pág. 41, 42, 43. Itálicos meus).
Anglada é ainda mais contundente quando, fazendo exegese, se refere à carta aos Hebreus:
Quando, no final da carta, o autor exorta seus leitores a lembrarem-se dos seus guias espirituais “os quais vos pregaram a palavra de Deus” (13.7), mencionando no verso seguinte que “Jesus Cristo ontem e hoje é o mesmo, e o será para sempre”, não estamos autorizados a concluir que na pregação da Palavra de Deus, Cristo faz ouvir a sua voz, exigindo irrestrita obediência dos ouvintes?
(Idem. Pág. 43-44).
As resoluções de Anglada lembram e muito um dos aspectos do dom de profecia no Novo Testamento, que é justamente a explicação e aplicação da Palavra à igreja (sobre o que pretendo tratar em outro post, se Deus permitir). Mas se você perguntar a um cessacionista se ainda existe profetas nos dias de hoje, poucos farão um esforço no sentido de definir biblicamente quais eram os atributos dos profetas, bem como o conteúdo de suas mensagens. Provavelmente, a resposta para sua pergunta seria um apressado e sonoro “não!”. Longe estou de sugerir que Paulo Anglada deva ser enquadrado naquilo que falei sobre o “continuísmo cessacionista”, visto que ainda não li nada dele sobre o debate em questão. Mas se ele ainda não se constitui em unanimidade entre os calvinistas cessacionistas e continuístas, talvez Calvino sim. Ou, de repente, não… Vejamos:
Onde quer que seja pregado o evangelho, é como se Deus viesse para o meio de nós. […] É certo que se vamos à igreja, não ouviremos apenas um homem mortal falando, mas sentiremos que Deus (por meio do de seu poder secreto) está falando à nossa alma; sentiremos que Ele é o professor. […] Deus nos chama para si como se estivesse falando-nos por sua própria boca e pudéssemos vê-lo ali, em pessoa.
(CALVINO, João. Sermon on the epistle to the Ephesians. Carlisle, PA; Edinburgh, Scotland: The Banner of Truh Trust, 1562, 1577, 1973, 1979, 1987, 1998. p. 42. Citado por Steven Lawson em  A arte expositiva de Calvino. Editora Fiel, 2008. p. 37).
Novamente, não me estenderei aqui por já estar preparando um post acerca da perspectiva de Calvino quanto à profecia. Embora não seja justo cansar a noiva antes do baile, faço questão de adiantar que a pesquisa apenas confirmará o mesmo ponto supracitado.
Mas os continuístas também tem lá o seu quê de cessacionismo. E como tem! Um exemplo? Simples: pergunte a qualquer continuísta sério se ele realmente crê que alguém, por mais cheio que seja (ou esteja) do Espírito, tenha a graça de ressuscitar alguém dentre os mortos, como o fez Pedro, por exemplo (At 9.40,41); ou então de curar enfermos simplesmente por meio de peças de roupas, como aconteceu a Paulo (At 19.12); ou então de estender um pedaço de pau e abrir um mar inteiro, como Moisés (Êx 14.15-31). Tudo bem, o exemplo citado de Moisés (e Paulo, quem sabe…) não se trata exatamente de um dom. Mas aqui temos outra confusão, e esta é entre dons e milagres. Se você me perguntar se Deus ainda cura doenças eu lhes respondo que “sim”. Mas se você me perguntar se existe alguém com o dom de cura, aí eu devo responder que “não”. Milagres, sim; dom, não necessariamente. Aqui ainda cabe outra confusão, e esta se refere aos tipos de milagres em si. Se alguém chegar para mim argumentando que podemos tudo porque “Jesus mesmo disse que ‘obras maiores do que estas vocês realizarão’”, aí eu vou pedir a esse irmão para realizar não menos que a ressurreição de algum morto. Entendam bem: a grande questão não é se Deus pode fazer estas coisas (abrir o mar, trasladar pessoas para o céu, retroceder a sombra do sol em dez graus, ruir as muralhas de Jericó, etc.). Sim, Ele pode! Mas a questão é: Ele está fazendo coisas assim nos dias de hoje? Pode Deus transportar o Pão de Açúcar do Rio de Janeiro para São Paulo? Visto que é Ele quem domina sobre os montes, claro que sim! Mas até que Ele não faça isso, os paulistas deverão se contentar apenas com a rede de supermercados homônima. Afora o tom irônico, há ou não certo cessacionismo no continuísmo?
[Mais confusão…]
Mas a confusão criada pela ala tresloucada dos continuístas (a qual eu chamaria de “caosrismáticos”) tem feito com que os cessacionistas acabem considerando quase todos os continuístas como farinha do mesmo saco.  A julgar pelo trato que alguns cessacionistas dispensam aos que pensam diferente deles, inclino-me a crer que os reformados continuístas acabam escapando da degola (ou do “saco”, como queiram) somente porque ainda são “conservadores” em termos de soteriologia. Digo isso porque há, lamentavelmente, cessacionistas que chegam ao ponto de considerar os nossos irmãos pentecostais como “hereges” e “apóstatas”. E não porque os pentecostais tenham negado a divindade de Jesus ou sua ressurreição (como os liberais), mas extamente porque negam o que o cessacionismo (pelo menos ala mais radical deste) afirma. Desconfio seriamente que essa postura soa como um aviso para que os continuístas calvinistas ponham suas barbas de molho.
Mas é bom que se diga que certos continuístas também pecam pela falta de tato e pelo extremismo ao rotular os outros. Por exemplo, Vincent Cheung disse que considera os cessacionistas como “deístas práticos” e que, “sem relegá-lo ao nível de heresia”,  vê o cessacionismo como uma doutrina “perigosa, vergonhosa e falsa”, que tem inflingido “tremendo dano à causa de Cristo, e contribuído para a situação lúgubre de alguns setores da igreja por toda a história e nos presentes dias”. Cheung ainda diz que “não contribui para uma discussão sóbria usar pessoas como Benny Hinn e Kenneth Copeland para determinar se a Escritura ensina a continuação dos dons espirituais”, e que “os carismáticos poderiam muito bem usar os ateístas para representar os cessacionistas, em cujo caso ganhariam o debate imediatamente”. Devo concordar com Cheung no que tange a usar como parâmetro para o debate líderes carismáticos caóticos, esdrúxulos e explicitamente desequilibrados como Benny Hinn e semelhantes. Certamente os “caosrismáticos” não representam a ala mais sóbria dos continuístas. “Existem vários recursos eruditos que refutam o cessacionismo, e é contra eles que os cessacionistas devem responder” [1], completa Cheung. Certíssimo! Contudo, discordo totalmente da noção de que o cessacionismo se constitui num deísmo prático; que é perigoso, vergonhoso e falso; e que tem contribuído para a situação letárgica de alguns setores da igreja ao longo dos séculos. Ora, se for assim é justo dizer que os responsáveis diretos pelo surgimento dos “Hagins” e “Hinns” da vida são os pentecostais. Discordo ainda mais do paralelo desrespeitoso e descabido entre cessacionistas e ateus. Então quer dizer que, dentro dessa linha de racioncínio, os cessacionistas estariam certos se comparassem a teologia pentecostal à salada mística da Nova Era, não é? Embora eu entenda Cheung, não justifico sua postura. Ele deveria pelos menos reconhecer que nem todo cessacionista é xiita, assim como nem todo continuísta é xamã. Um extremo leva a outro.
[Matéria de salvação?]
Além disso tudo, outro grande problema é que as partes discutem o assunto como se o mesmo fosse matéria de salvação; como se algum ponto fundamental do Cristianismo (como as doutrinas da justificação pela fé somente, da Encarnação e da ressurreição de Cristo, por exemplo) estivesse em jogo. Entendam bem: não estou relegando a pneumatologia a um plano inferior dentro da teologia, mas apenas dizendo que esse tipo de divergência ao qual estamos nos referindo aqui não torna absurdamente heréticas as partes conflitantes, como são absurdamente heréticos o sabelianismo, o teísmo aberto e o liberalismo, por exemplo. Sustentar o contrário seria o mesmo que dizer que apenas os que entendem a eleição é que serão salvos. Quando a coisa vai por esse caminho, declino do debate. Já se foi o tempo em que eu arracava os cabelos por essas coisas.
[Conclusão]
Os cessacionistas dirão: “fim de papo”. Os continuístas dirão: “to be continued…”. Até que Cristo de fato volte, penso que sempre será assim. Que seja, mas que haja mais respeito entre as partes! Que cada um procure entender a perspectiva alheia e esclareça a sua própria, não somente para um melhor entendimento do assunto, mas para que a Verdade promova a humildade no seio dos envolvidos. E que a Escritura sempre seja, como bem rezam nossos símbolos de fé, o Juiz em tudo. Submetamo-nos, pois, ao Espírito que por ela ainda fala.
Soli Deo Gloria!
P.S.: Em meu blog falei algo sobre o “cessacionismo que defendo” (aqui). A presente postagem aqui no 5 Calvinistas, portanto, vem esclarecer em parte o que eu quis dizer alhures.
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