quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Livres para pensar e fazer planos


Num dos grupos que participo, alguém postou parte de um artigo do Pr. Ciro Sanches Zibordi em defesa do livre-arbítrio. O que segue é meu comentário, postado no grupo e reproduzido aqui para apreciação.
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Não gosto de responder a argumentos de quem não está no grupo, pois não se dá a oportunidade da pessoa contra-argumentar ou até mesmo esclarecer algum ponto mal entendido de suas palavras. Mesmo assim, vou comentar o seu post e publicar em meu blog, indicando ao autor caso queira se manifestar a respeito.


Não conheço o autor do artigo e escrevo sem atacar a sua pessoa, pois se o fizesse estaria pecando por falar mal de quem sequer conheço e suponho seja um homem de Deus, levantado para apascentar um rebanho do Senhor.

Portanto, no que segue nada há de pessoal.
Sendo assim, começo dizendo que o autor foi infeliz, ao começar o artigo dizendo que "certos irmãos predestinalistas tem zombado de quem crê na doutrina do livre-arbítrio", que "o que eles mais gostam de fazer é ridicularizar os seus irmãos" e que eles "chegam ao ponto de crer mais em Calvino que no Senhor Jesus". Generalizações são sempre ruins, pois há excesso e desrespeito de ambos os lados, mas não representam os santos que tem discordado amorosamente, buscando na Palavra de Deus uma compreensão mais clara sobre este importante e controvertido assunto.

O autor declara "você não entende o livre-arbítrio? Mas ele é bíblico!" e afirma mais adiante que "o livre-arbítrio é uma verdade bíblicocêntrica e cristalina". São afirmações fortes, e grandes declarações requerem provas robustas. Mas antes mesmo de considerar as provas apresentadas, convém deixar claro que o livre-arbítrio não é e nunca foi uma verdade central na escritura. Cristo é o centro da Bíblia, e se fôssemos comparar, a doutrina da soberania divina é sim presente na Bíblia, de Gênesis a Apocalipse. O termo livre-arbítrio, um sinônimo ou mesmo a idéia de livre-arbítrio jamais ocorre na Bíblia.


Nem tudo o que o autor diz em seu texto contraria o que eu creio. Além dos conselhos dados no final da mensagem, concordo plenamente quando ele diz que "foi Deus quem dotou o ser humano da livre-vontade (Gn 3)". Aliás todos os calvinistas que eu conheço ou tive oportunidade de ler crêem que o homem foi dotado de livre-arbítrio na criação.


As divergências começam quando, o autor afirma "mesmo depois da Queda, e os efeitos deletérios advindos dela, o ser humano continuou com esse atributo (Dt 30.19; Is 1.18,19)".
Antes de analisar esta declaração, convém definir o que é livre-arbítrio e o que não é.

Livre-arbítrio é a capacidade de todo pecador de escolher igualmente entre a salvação e a perdição, entre crer e descrer de Cristo. Não creio que o homem tenha essa capacidade. Mas livre-arbítrio não é, como confundem alguns, vontade, liberdade ou escolha. Não negamos que o homem tenha vontade, apenas que essa vontade seja naturalmente boa e livre. Não negamos que o homem seja livre, no sentido de que toma decisões livremente, de acordo com a sua natureza; apenas afirmamos que sua natureza está corrompida pelo pecado e por isso não decide em favor de Deus. E, finalmente, não negamos que o homem faça escolhas, mas discordamos que tenha poder de fazer boas escolhas espirituais. Em adição, afirmamos que essa incapacidade absoluta do homem é suplantada pela graça invencível do Senhor.


Tendo isso em mente, consideremos as passagens bíblicas colocadas como prova da biblicidade do livre-arbítrio. Mesmo sabendo que isso alonga o texto, prefiro transcrever os textos bíblicos, pois nem sempre o leitor tem uma Bíblia em mãos e pode se esquecer de confirmar as passagens depois.
Uma das passagens referenciadas pelo autor diz "os céus e a terra tomo, hoje, por testemunhas contra ti, que te propus a vida e a morte, a bênção e a maldição; escolhe, pois, a vida, para que vivas, tu e a tua descendência" Dt 30:19.

A passagem acima não ensina que o homem tem capacidade de fazer uma boa escolha espiritual, apenas que uma escolha foi posta diante dele. E o que eles escolheram? A história comprova que eles, escolhendo livremente de acordo com sua natureza caída optaram pela morte e maldição. Deus, que não precisa do testemunho da história, já sabia disso, pois disse a Moisés poucos versículos adiante: "eis que estás para dormir com teus pais; e este povo se levantará, e se prostituirá, indo após deuses estranhos na terra para cujo meio vai, e me deixará, e anulará a aliança que fiz com ele" (Dt 31:16). Deus não botava muita confiança no livre-arbítrio daquele povo. Moisés também não, pois acrescentou, dirigindo-se ao povo "porque conheço a tua rebeldia e a tua dura cerviz. Pois, se, vivendo eu, ainda hoje, convosco, sois rebeldes contra o Senhor, quanto mais depois da minha morte?" (Dt 31:27). O resto é história.


Diante de uma escolha, sem nenhuma coerção externa, decidindo de acordo com sua natureza, o povo escolheu pecar. Isto prova um livre-arbítrio capaz de escolher o bem? De jeito nenhum, se prova algo, prova exatamente o contrário.


O outro texto mencionado é "vinde, pois, e arrazoemos, diz o Senhor; ainda que os vossos pecados sejam como a escarlata, eles se tornarão brancos como a neve; ainda que sejam vermelhos como o carmesim, se tornarão como a lã. Se quiserdes e me ouvirdes, comereis o melhor desta terra" (Is 1:18-19). Em primeiro lugar, notemos que o versículo fala apenas que aquele que for, quiser e ouvir terá perdão de pecados e comerá do bem da terra. Nada diz sobre uma capacidade inata de ir, querer e ouvir. Outras partes da Bíblia mostram que o pecador não tem essa capacidade em si mesmo.
Mas o mesmo capítulo faz uma descrição do pecador que longe de retratá-lo com capacidade plena de escolher entre uma opção e outra, o mostra como incapacitado pela enfermidade do pecado. Nas palavras do Senhor "toda a cabeça está doente, e todo o coração, enfermo. Desde a planta do pé até à cabeça não há nele coisa sã, senão feridas, contusões e chagas inflamadas, umas e outras não espremidas, nem atadas, nem amolecidas com óleo" (Is 1:5-6). Se alguém disser que essa condição dele é apenas física e que espiritualmente ele está capacitado a fazer boas escolhas, então o Senhor diz, no mesmo capítulo, "o boi conhece o seu possuidor, e o jumento, o dono da sua manjedoura; mas Israel não tem conhecimento, o meu povo não entende" (Is 1:3). Se o homem nessa condição tem livre-arbítrio, muito mais o tem bois e jumentos, pois estes conhecem o seu dono, já o pecador não tem conhecimento nem entendimento que o capacite a fazer uma escolha pelo Senhor.

Porém, descuido muito maior o autor do texto teve ao afirmar: "e a condição hoje para a salvação em Cristo é — mediante o livre-arbítrio — arrepender-se e crer no evangelho (Jo 3.16,36; Mc 16.16; At 3.19; Rm 10.9,10; Ap 22.17)". Com essa afirmação, o autor atribui ao livre-arbítrio a capacidade de crer e se arrepender. Mas uma análise das passagens bíblicas referenciadas mostra que essas passagens não provam o que se pretende provar.


No capítulo 3 de João, Jesus diz que "Deus amou ao mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna" (Jo 3:36) e que "quem crê no Filho tem a vida eterna; o que, todavia, se mantém rebelde contra o Filho não verá a vida, mas sobre ele permanece a ira de Deus" (Jo 3:36). Nada nessas passagens sequer sugere que o que leva a pessoa à fé é o livre-arbítrio. Tampouco quando diz "quem crer e for batizado será salvo; quem, porém, não crer será condenado" (Mc 16:16) ou ordena "arrependei-vos, pois, e convertei-vos para serem cancelados os vossos pecados" (At 3:19) o livre-arbítrio é insinuado. De igual modo, a promessa "se, com a tua boca, confessares Jesus como Senhor e, em teu coração, creres que Deus o ressuscitou dentre os mortos, serás salvo. Porque com o coração se crê para justiça e com a boca se confessa a respeito da salvação" (Rm 10:9-10) não requer o livre-arbítrio, tão somente destaca a fé e a confissão como requisitos da salvação. E, finalmente, quando "o Espírito e a noiva dizem: Vem! Aquele que ouve, diga: Vem! Aquele que tem sede venha, e quem quiser receba de graça a água da vida" (Ap 22:17) não fala nem sugere que é pelo poder do livre-arbítrio que alguém recebe a água da vida.

Em resumo, em nenhuma dessas passagens é dito que o arrependimento e a fé nascem ou ocorrem mediante o livre-arbítrio. Afirmar isso é impor um sentido que não era a intenção do autor, ou seja, é fazer eis-egese e não ex-egese.

Por outro lado, a Escritura deixa bem claro que tanto o arrependimento como a fé são dons de Deus e não produtos do livre-arbítrio. Inúmeras passagens provam isso. Paulo escreve aos crentes de Éfeso que nós cremos "segundo a eficácia da força do Seu poder" (Ef 1:19) e por isso pode afirmar "pela graça sois salvos, mediante a fé; e isto não vem de vós; é dom de Deus" (Ef 2:8). Também aos filipenses ele escreveu "vos foi concedida a graça... de crerdes nEle" (Fp 1:29). Paulo não está inventando moda, pois Jesus já havia dito que "ninguém poderá vir a mim, se, pelo Pai, não lhe for concedido" (Jo 6:65), derrubando assim a presunção de que é mediante o livre-arbítrio que alguém vai a Cristo.

Semelhante coisa pode ser dita do arrependimento, que não é obra de um livre-arbítrio bem utilizado, mas uma graça concedida pelo Senhor. Lucas registrou na segunda parte de seu livro que "também aos gentios foi por Deus concedido o arrependimento para vida" (At 11:18). Paulo repreende aqueles que desprezam "a riqueza da sua bondade, e tolerância, e longanimidade, ignorando que a bondade de Deus é que te conduz ao arrependimento?" (Rm 2:4). Certamente ele diria algo parecido aos que atribuem ao livre-arbítrio o arrepender-se quando "a tristeza segundo Deus" é que "produz arrependimento para a salvação" (2Co 7:10), ficando na "expectativa de que Deus lhes conceda não só o arrependimento para conhecerem plenamente a verdade" (2Tm 2:25).

Em conclusão, podemos ainda invocar o testemunho de Tiago de que "toda boa dádiva e todo dom perfeito são lá do alto, descendo do Pai das luzes" (Tg 1:17) e não da natureza caída do homem.

Para finalizar, o autor disse "portanto, caro irmão, seja humilde para reconhecer o seu equívoco interpretativo", o que não deixa de ser um excelente conselho. Faço votos de que ele reveja a sua posição e se concluir que equivocou-se na interpretação, tenha humildade para seguir o bom conselho que deu.

Soli Deo Gloria

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