Cheung e a metafísica
Uma necessária nota inicial:
Este texto foi publicado originalmente no RVJ. Foi-me sugerido incluir notas explicativas sobre o conteúdo metafísico, dado que provavelmente os leitores do 5C, na sua maioria, não possuem leitura filosófica. Bem, nunca é fácil falar de metafísica. Acho que as notas acabariam por serem maiores que a própria postagem. E tenho sérias dúvidas quanto a minha capacidade em escrever sobre o assunto.
Assim, prefiro deixar apenas esta nota com duas sugestões. Uma é que, caso o meu texto instigue sua curiosidade, procure ler um livro sobre metafísica, ainda que inicie pelos simplistas (como os de ensino médio). Ou, se sua curiosidade não chega a tanto, pergunte aqui e tentarei responder, se eu puder. Outra, o que é mais importante, e é o próprio objetivo do texto que segue, não tenha por certo o que um determinado autor fala sobre um tema. Se quer mesmo conhecer sobre um assunto, metafísica ou outro qualquer, leia vários autores e vários títulos. E forme seu próprio pensamento sobre aquilo que está a estudar.
Quanto à sugestão de literatura, infelizmente não conheço qualquer livro que trate metafísica e seja profundo e simples ao mesmo tempo. Talvez algum leitor possa me ajudar quanto a isso e indicar algo nos comentários.
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Sempre que leio algo de Cheung, fico com a impressão que ele não entende nada de metafísica. Claro, posso estar redondamente enganado. Em algum lugar ele deve ser profundo e tirar, num só texto de impressionante erudição, todos os meus receios de pouco entendimento do assunto.
Não vale a pena citar muita coisa. Há um parágrafo seu que é emblemático. Respondendo a alguém sobre o mal como privação, ele diz o seguinte:
Agora, nós podemos dizer que o mal não tem um status ontológico como o bem, visto que o próprio Deus é a Bondade, e não há um Mal como contraparte. Se isto é o que queremos dizer, então isso é bíblico e verdadeiro; de outra forma, estaríamos afirmando o dualismo, ou a visão de que o Bem e o Mal são dois poderes eternos auto-existentes, iguais ou quase iguais, que lutam um contra o outro. Desta perspectiva, é correto negar o Mal como tendo um status ontológico em si mesmo.
Está corretíssima a visão de Deus como o Absoluto, e como Bom, sem qualquer dualismo de absolutos, bem e mal. Também é correto que isto é bíblico. Mas a afirmação como um todo é vazia de significado, se estamos falando de metafísica.
Há aquela eterna confusão de Deus com o ser. Ora, Deus é ser, mas o ser não é Deus. Deus é um ente entre entes. Ele é. Como tudo o que é, é. Que Ele seja um (ou “o”) Ser Necessário e que todo outro ser derive seu ser deste Ser não pode nos fazer confundir os conceitos. Pois se os confundirmos, todo o pensamento que se segue é torto. Isso para não falar do perigo do panteísmo.
É curiosa a afirmação de status ontológico do bem. Parece que estamos a falar de mais um ente. Mas não é isso! O bem é o próprio ser. Algo é bom, ou um bem, por ser. O ser é bom, ou é bem. Assim, o que é, é bom, é bem. Ou seja, não é que o bem tem status ontológico, mas que o que tem status ontológico é bem, simplesmente por ter status ontológico. Ou ainda, o bem não é algo que é, à parte do que é, mas é algo próprio do ser que é.
E o mal? Para facilitar, falemos num ente que possui um modo de ser (essência, ou significado para alguns de meus irmãos que negam ou possuem restrições à metafísica clássica). O mal é um afastamento deste seu modo de ser. Em termos do evangeliquês, o mal é algo se desviar do que deveria ser, conforme aquilo que Deus diz que tal algo é. É assim que o mal é corrupção, é falta, é privação de ser. Ainda em outros termos simples, o mal é a tendência ao nada pelo ser do ente, um afastamento de seu modo de ser, enquanto o bem, num ente, é a tendência à perfeição do ente quanto a seu modo de ser.
Vale ainda dizer que Deus ser bom, metafisicamente, não é o mesmo que dizer que Deus é bom, moralmente. Ora, que Deus é bom, metafísica e moralmente, está além de qualquer discussão. Mas quando falamos metafisicamente, estamos dizendo que Deus é bom porque é. E não é difícil chegar a que Deus é o ser em sua máxima perfeição, sem sombra de não-ser. Deus é, e não pode não ser. É impossível não haver status ontológico em Deus, pelo que o mal não lhe convém. Mal: estamos falando ontologicamente. Porém não é difícil ver a implicação moral do mal como corrupção…
Bem, em cada texto de Cheung que me chega, tudo isso lhe escapa… Concordo com ele que não há que se ter pudor em falar de Deus como o autor do mal. Enquanto, sem status ontológico, o mal “existe”, tem Deus como sua fonte última. Nem que seja conceitualmente em Seus decretos (isso daria uma boa discussão, pois se ser é significar, o significado é pelo Verbo!). Contudo, insistir que o mal seja bem por criado por Deus como um tema a ser tratado sem o devido conceitual metafísico é, além de contraproducente, temerário. Contraproducente porque confuso ao ponto da insignificância (ou seja, tanto sem significado quanto desimportante). E temerário porque confuso ao ponto de causar tropeços (ao menos nos faz lembrar, aos que percebem a confusão: ai dos que chamam o mal bem e o bem mal).
Então me sobrevêm seus fãs dizendo que Agostinho fez uma estúpida defesa de Deus ou que “se Calvino matou mil, Cheung matou dez mil”… Tal desrespeito pela herança intelectual que temos, e que o próprio Cheung confessa, só demonstra que a mente de Agostinho e Calvino são inatingíveis para eles. E se Cheung lhes parece claro e matador, provavelmente é porque ele escreve ao nível que têm.
Para ser justo, volto a afirmar que Cheung pode saber mais ou ser melhor do que o que li dele até agora. Porém confesso ter cada vez menos interesse em conhecê-lo melhor. Pois também volto a afirmar que ele tem feito mais desserviço que sido útil em fazer cristãos fortes doutrinariamente e maduros para o bom combate. Algo que me é profundamente lamentável.
SDG!
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