terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

A Doutrina Calvinista da Eleição para a Salvação

Rev. Samuel Falcão

A teoria calvinista de eleição para a salvação é apresentada com clareza em várias Confissões de Fé. A Confissão de Fé de Westminster apresenta-a nos seguintes termos:
“Segundo o seu eterno e imutável propósito e segundo o santo conselho e beneplácito da sua vontade, Deus, antes que o mundo fosse criado, escolheu em Cristo para a glória eterna os homens que são predestinados para a vida; para o louvor da sua gloriosa graça, Ele os escolheu de sua mera e livre graça e amor, e não por previsão de fé, ou de boas obras e perseverança nelas, ou de qualquer outra coisa na criatura que a isso o movesse, como condição ou causa. Assim como Deus destinou os eleitos para a glória, assim também, pelo eterno e mui livre propósito da sua vontade, preordenou todos os meios conducentes a esse fim; os que, portanto, são eleitos, achando-se caídos em Adão, são remidos por Cristo, são eficaz­mente chamados para a fé em Cristo pelo seu Espírito, que opera no tempo devido, são justificados, adota­dos, santificados e guardados pelo seu poder por meio da fé salvadora. Além dos eleitos não há nenhum outro que seja remido por Cristo, eficazmente cha­mado, justificado, adotado, santificado e salvo”.[1]
O Sínodo de Dort apresentou esta doutrina nos termos que se seguem:
“A eleição é o imutável propósito de Deus, pelo qual, antes da fundação do mundo, conforme o Seu genero­síssimo beneplácito, e por mera graça Sua, de todo o gênero humano — caído, por sua própria culpa, de sua integridade original para o pecado e destruição — Ele escolheu em Cristo para a salvação um número fixo de determinadas pessoas, nem melhores nem mais dignas do que outras, mas jazendo na mesma miséria das demais. Por esse mesmo propósito Ele, desde toda a eternidade, designou a Cristo para ser Mediador, cabeça de todos os eleitos e fundamento da salvação. E assim decretou dar-lhos a Ele, para serem salvos, e por Sua Palavra e Espírito chamá-los eficaz­mente e atraí-los para uma comunhão consigo: isto é, dar-lhes verdadeira fé nEle, justificá-los, santificá-los e finalmente glorificá-los, sendo eles guardados podero­samente na comunhão de Seu Filho, para demonstração de Sua misericórdia, e louvor das riquezas de Sua graça gloriosa.
“A dita eleição foi feita, não baseada em previsão de fé, obediência de fé, santidade ou outra qualquer boa qualidade ou disposição, como causa ou condição, requerida previamente na pessoa para ser escolhida, mas foi feita para a fé, santidade, etc. Por conseguinte a eleição é a fonte de todo bem salvador, da qual a fé, a santidade e os restantes dons salvadores, e, por fim, a própria vida eterna promanam, como frutos e efeitos dela”.[2]
No Artigo Dezessete da Igreja da Inglaterra, lemos:
“A predestinação para a vida é o eterno propósito de Deus, pelo qual (antes que os fundamentos do mundo fossem lançados) Ele decretou inalteravelmente, por Seu conselho, secreto para nós, livrar da maldição e condenação aqueles a quem em Cristo escolheu do gênero humano, e trazê-los por Cristo à salvação eter­na, como vasos feitos para honra. Em conseqüência disso, recebem de Deus essa excelente bênção, sendo chamados pelo Seu Espírito que neles opera no devido tempo: que pela graça eles obedecem ao chamado, são feitos filhos de Deus por adoção, são conformados à imagem de Seu Unigênito Filho Jesus Cristo, prati­cam religiosamente boas obras; e por fim, pela mise­ricórdia divina, chegam à bem-aventurança eterna”.[3] (2)
Esta doutrina é apresentada em termos semelhantes em várias outras confissões, como a Segunda Confissão Helvética, a Confissão Francesa, a Confissão Belga, a Fórmula Suíça de Acordo (Formula Consensus Helvética). Aparece também no artigo três da Igreja da Irlanda. É muito interessante saber que os valdenses a aceitaram. A este fato refere-se Spurgeon nas seguintes palavras:
Se lerdes o credo dos antigos valdenses, que surgiu do meio deles no auge da perseguição vereis que es­ses renomados professores e confessores da fé cristã receberam e abraçaram firmissimamente esta doutri­na, como sendo uma parcela da verdade divina. Copiei de um livro antigo um dos artigos de sua fé: "Deus salva da corrupção e condenação aqueles a quem escolheu, desde a fundação do mundo, não em virtude de qualquer disposição, fé ou santidade que previsse neles, mas meramente por sua misericórdia em Cristo Jesus seu Filho, preterindo todos os demais, de acordo com a razão irrepreensível de sua livre vontade e justiça.[4] (1)
Estas declarações, que cremos serem corroboradas ampla­mente pelas Escrituras, afirmam certos fatos importantes sobre a eleição para a salvação, fatos que passaremos agora a considerar.

1) Deus é o Autor da Eleição

“Bendito o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo... que... nos escolheu nele antes da fundação do mundo” (Ef.1:3,4). “Nele fomos também feitos herança, predestinados se­gundo o propósito daquele que faz todas as coisas conforme o conselho da sua vontade" (Ef. 1:11). “Deus nos escolheu desde o princípio para a salvação” (2Ts.2:13). “Deus não nos destinou para a ira, mas para alcançar a salvação mediante nosso Senhor Jesus Cristo” (1Ts.5:9). “Por causa dos eleitos que ele escolheu, abreviou tais dias” (Mc.13:20). “Manifes­tei o teu nome aos homens que me deste do mundo; eram teus, tu mos confiaste” (Jo.17:6). Jesus disse aos seus discípulos: “Não fostes vós que me escolhestes a mim, pelo contrário, eu vos escolhi a vós outros” (Jo.15:16; cf. 15:19 e cap. 13:18). Evidencia-se, destas e de muitas outras passagens, que Deus é a causa eficiente da eleição. Como já vimos, os arminianos pra­ticamente negam este fato, fazendo da vontade do homem “a causa última, determinante” de sua eleição. Segundo eles, Deus realmente elege todas as pessoas. Mas, como Ele é frustrado em Seu propósito por aqueles que não querem crer e não querem elegê-LO, todas as pessoas não são salvas. Qual é a única conclusão lógica que podemos tirar desta teoria? É que os salvos, os eleitos são aqueles que elegem Deus, os que O escolhem. É exatamente o contrário do que a Bíblia ensina sobre o assunto, a saber, que Deus é o Autor da eleição. “Uma coisa é dizer que Deus é o autor de um plano de redenção, que en­volve a realização de uma expiação universal e a concessão de graça universal, e exatamente outra coisa é dizer que Ele é o autor da eleição de pecadores para a salvação. A primeira os arminianos afirmam; a segunda eles são obrigados logicamente a negar”.

2) A Eleição é desde a eternidade

“Vinde, benditos de meu Pai! entrai na posse do reino que vos está preparado desde a fundação do mundo” (Mt.25:34) “Aos que de antemão conheceu, também os predestinou” (Rm.8:29). “Assim como nos escolheu nele antes da fundação do mundo” (Ef.1:4). “... Nos predestinou para ele, para a ado­ção de filhos, por meio de Jesus Cristo, segundo o beneplácito de sua vontade... Desvendando-nos o mistério da sua vontade, segundo o seu beneplácito que propusera em Cristo” (Ef.1:5,9). “Conforme a sua própria determinação e graça que nos foi dada em Cristo Jesus antes dos tempos eternos” (2Tm.1:9). “E adorá-la-ão todos os que habitam sobre a terra, aqueles cujos nomes não foram escritos no livro da vida do Cordeiro que foi morto, desde a fundação do mundo” (Ap.13:8).
Contraditando estas declarações explícitas da Bíblia, os arminianos ensinam que a eleição não ocorre na eternidade, e sim no tempo. Confundindo causa com efeito, dizem que o ho­mem não é realmente eleito senão quando se arrepende e crê. Confundem eleição na eternidade com sua execução no tempo. (Veja-se Tito 1:2,3). Mas, como vimos, insistindo que a eleição só ocorre no tempo, ensinam de fato que ela não ocorre no tempo.
“A doutrina geral deles consiste explicitamente no se­guinte, que a eleição se condiciona à previsão divina da perseverança na fé e santa obediência até o fim. Um crente pode, perto do fim de sua carreira terre­na, cair da graça, total e finalmente, e perecer para sempre. Para serem coerentes com esta doutrina de­vem, pois, sustentar que a eleição não pode ocorrer no tempo, mas que só se pode dar quando o tempo, com todas as suas incertezas, tiver cessado para o crente e este tiver realizado o fim de sua fé. Só pode ocorrer no momento de o homem expirar, ou depois disse, porque até esse momento crítico ele pode per­der sua religião e privar-se do céu. Existe pois ai uma flagrante contradição. Afirma-se que a eleição ocorre no tempo; por outro lado também se afirma que ela ocorre após o tempo haver cessado: ocorre quando o homem crê, é justificado e santificado; ocor­re quando o homem tiver chegado ao fim de sua car­reira e entrar no céu! Em face de tudo isto parece que eles sustentam uma eleição na eternidade, mas eternidade a parte post, não eternidade a parte an­te”.[5]

3) A Eleição é em Cristo

“Bendito o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que nos tem abençoado com toda sorte de benção espiritual nas regiões celestiais em Cristo, assim como nos escolheu nele antes da fundação do mundo” (Ef.1:3,4). “... Nos predestinou para ele, para a adoção de filhos, por meio de Jesus Cristo... para louvor da glória de sua graça, que ele nos concedeu gratuitamente no Amado” (Ef.1:5,6). “Glorifica a teu Filho, para que o Filho te glorifique a ti; assim como lhe conferiste autoridade sobre toda a carne, a fim de que ele conceda a vida eterna a todos os que lhe deste” (Jo.17:1,2). Segundo o Novo Testamento, tudo quanto gozamos, como crentes, gozamo-lo “em Cristo” e por Seu intermédio. Por nossa identificação com Ele, morre­mos, fomos sepultados e ressurgimos com Ele, e somos aben­çoados nas regiões celestiais ainda com Ele (ver Rm.6:3-6; Ef.1:3). O amor com que Deus nos ama e do qual nada nos pode separar, é amor “em Cristo Jesus nosso Senhor” (Rm.8:39). NEle temos o perdão de nossos pecados (Ef.4:32). So­mos um só corpo em Cristo (Rm.12:5). Em Cristo somos no­vas criaturas (2Co.5:17). O pacto da graça foi confirmado em Cristo (Ef.3:6). Em Cristo triunfamos (2Co.2:14). Com Ele morremos, com Ele viveremos; com Ele sofremos, com Ele reinaremos (2Tm.2:11,12). O Pai fez doação dos eleitos a Cristo (Jo.6:39; 17:2,6,9,11,12,24). Somos ovelhas do seu redil e um dia Ele nos apresentará ao Pai, dizendo: “Eis aqui estou eu, e os filhos que Deus me deu” (Hb.2:13).

4) A Eleição não depende de nossos méritos, mas unicamente da soberana graça de Deus

“Que nos salvou e nos chamou com santa vocação; não se­gundo as nossas obras, mas conforme a sua própria determinação e graça que nos foi dada em Cristo Jesus antes dos tempos eternos” (2Tm.1:9). Como já provamos, nossa eleição não depende de nada que Deus previu em nós. Nossa fé, obediência e perseverança não são a causa, mas a conseqüência de nossa eleição. Fornos eleitos para a obediência, não por sermos obe­dientes. (1Pe.1:2). Fomos predestinados para sermos “conformes à imagem” de Cristo, não porque já temos essa imagem (Rm.8:29). Pela graça é que somos salvos, e não por obras (Ef.2:8). A eleição que a Bíblia revela é “a eleição da graça” (Rm.11:5), e graça quer dizer favor não merecido. Fomos escolhidos não porque fomos previstos como santos, mas “para sermos santos e irrepreensíveis perante ele" (Ef.1:4). Esta eleição tem como objetivo o louvor da graça divina, e não o louvor de nossa fé, obediência, perseverança e santidade (Ef.1:5,6; 2:7). As boas obras desempenham importante papel em nossa vida de cristãos. Contudo, não podemos praticá-las até que Deus faça de nós uma nova criação em Cristo. Ao invés de sermos criados por causa de nossas boas obras, somos “cria­dos em Cristo Jesus para boas obras, as quais Deus de antemão preparou para que andássemos nelas” (Ef.2:10). E por este motivo, nossas boas obras não resultam em nossa própria gló­ria, mas na glória de nosso Pai celeste (Mat. 5:16). Como ár­vores corrompidas, não podemos produzir nenhum fruto bom até que Deus faça de nós novas árvores, pelo poder do seu Es­pírito, cujos frutos vêm indicados em Gl.5:22,23. Não fo­mos eleitos ou escolhidos porque Deus previu que daríamos fruto, mas para que fôssemos e déssemos fruto. (Jo.15:16). Quando Paulo diz, “Desenvolvei a vossa salvação com temor e tremor” logo acrescenta, “porque Deus é quem efetua em vós tanto o querer como o realizar, segundo a sua boa vontade” (Fp. 2:12,13). Além disso, ele aí está falando de obediência, como podemos ver pela leitura de todo o verso 12, e portanto está falando daquele aspecto da salvação em que cooperamos com Deus, a saber, a santificação ou salvação do poder do pecado. Esta fase de nossa salvação vem depois de nossa justifi­cação e regeneração, que é obra exclusiva de Deus.

5) A Eleição tem a nossa salvação como seu objetivo imediato

“Entretanto, devemos sempre dar graças a Deus, por vós, irmãos amados pelo Senhor, por isso que Deus nos escolheu desde o princípio para a salvação, pela santificação do Espírito e fé na verdade, para o que também vos chamou mediante o nosso evangelho, para alcançar a glória de nosso Senhor Jesus Cristo” (2Ts.2:13.14). “Deus não nos destinou para a ira, mas para alcançar a salvação mediante nosso Senhor Jesus Cristo” (1Ts.5:9). “Assim como lhe conferiste autoridade sobre toda a carne, a fim de que ele conceda a vida eterna a todos os que lhe deste” (Jo.17:2). “Creram todos os que haviam sido destinados para a vida eterna” (At. 13:48).
Este último verso merece algum comentário. Quatro fatos são claramente ensinados aí: Primeiro, que a fé é a conseqüência e não a causa da eleição. Segundo, que “somente um núme­ro limitado é destinado à “vida eterna”, porque se todas as pessoas, sem exceção, fossem destinadas a isso por Deus, então as palavras “todos os que” apresentariam uma restrição sem sentido”. Terceiro, que essas pessoas foram destinadas ou elei­tas não para o gozo de privilégios externos, não somente para serviço, não para o usufruto dos meios de graça (isto todas elas gozavam naquela ocasião), mas foram destinadas para a “vida eterna”, para a salvação mesmo. Quarto, que “todos — “todos os que”, sem faltar um só — que foram assim ordenados por Deus para a vida eterna com toda a certeza virão a crer”.
Spurgeon teceu os seguintes comentários em torno da pas­sagem em questão:
“Tentativas têm sido feitas para provar que estas pa­lavras não ensinam predestinação, mas essas tentati­vas violentam com tanta evidência a linguagem do texto que não perderei tempo em responder a elas. Leio: “Creram todos os que haviam sido destinados para a vida eterna”. Não torcerei o texto, mas glorificarei a graça de Deus atribuindo-lhe a fé que todos nós temos. Não é Deus que dá a disposição para crer? Se os homens são predispostos a ter a vida eterna, não pode Ele — em todos os casos — predispô-los? E incorreto para Deus conceder graça? Se é correto Ele concedê-la, é incorreto Ele propor fazer isso? Gostaríeis que Ele a concedesse acidentalmente? Se é cor­reto Ele propor conceder graça hoje, foi-lhe correto propô-lo ontem — e, visto como Ele não muda — desde a eternidade”.[6]

6) A Eleição resultará na glória de Deus

“A fim de que também desse a conhecer as riquezas da sua glória em vasos de misericórdia, que para glória preparou de antemão” (Rm.9:23). “... Nos predestinou para ele, para a adoção de filhos, por meio de Jesus Cristo... para louvor da glória de sua graça” (Ef.1:5,6). “Predestinados... a fim de ser­mos para louvor da sua glória” (Ef.1:11,12). “E juntamente com ele nos ressuscitou... para mostrar nos séculos vindouros a suprema riqueza da sua graça” (Ef.2:6,7).
Este ponto já foi considerado no capítulo segundo, e não precisa de mais comentários. Sabemos que tudo no mundo tem, como objetivo supremo, a revelação da glória de Deus, e a elei­ção não foge a esta regra.

7) A Eleição tem indivíduos por alvo

A linguagem empregada com relação aos eleitos mostra claramente que ela tem indivíduos por objeto seu. A. A. Hodge considera este ponto nos seguintes termos:
“1°) Fala-se deles sempre como indivíduos e a eleição da qual são objeto é sempre apresentada como tendo graça ou glória como sua finalidade — Atos 13:48; Ef. 1:4; 2Ts.2:13. 2º) Nas Escrituras os eleitos sempre são claramente distintos da massa da Igreja visível; daí a eleição deles não poder ter sido apenas para o gozo dos privilégios externos dessa Igreja — Rom. 11:7. 3º) Diz-se que os nomes dos eleitos estão “escritos no céu”, e constam no “livro da vida” — Heb. 12:23, Fp.4.3. 4º) As bênçãos que, segundo declaração explícita, são asseguradas por esta elei­ção, são graciosas e salvadoras, e são parte integrante e resultado da salvação, inseparáveis desta, e concer­nem não a nações, mas a indivíduos, que são seus objetos, e.g., “adoção de filhos”, “para serem conformes à imagem de seu Filho”, etc. — Rm.8;29; Ef.1:5; 2Ts. 2:13; 1Ts.5:9; Rm.9:15,16”.[7]
Os arminianos dizem que a eleição de que Paulo falou em Romanos 9 e 11 não é “eleição pessoal para a salvação, mas uma eleição nacional ou coletiva para o gozo de privilégios”. Vamos responder a esta objeção com palavras do Dr. Dabney:
“Minha primeira e principal contestação a essa idéia é que é inteiramente inconciliável com o escopo de São Paulo na referida passagem. Qual é esse escopo? Obviamente é defender sua grande proposição de “Justificação por livre graça mediante a fé”, comum a ju­deus e gentios, sim, defendê-la de um sofisma que, do ponto de vista dos fariseus, era irrespondível, a sa­ber:“Se a doutrina de Paulo fosse verdadeira, então o concerto de eleição feito com Abraão seria falsea­do? Como responde o Apóstolo? Obviamente (e irresistivelmente) dizendo que esse concerto não teve nunca a intenção de abranger toda a linhagem de Abraão, como coletividade, Rom. 9:6 “Não pensemos que a palavra (concerto) de Deus haja falhado”. “Porque nem todos os de Israel são de fato israelitas”, etc. O Apóstolo então prova este fato decisivo lembrando aos judeus que, logo na primeira geração, um dos filhos de Abraão foi excluído e o outro foi escolhido. Na geração seguinte, no caso dos gêmeos — filhos do mesmo pai e mãe (para que a identidade da linhagem fosse a mais absoluta possível) — outra vez um foi soberanamente excluído. E assim, daí para diante, alguns hebreus de descendência regular foram excluídos e outros, escolhidos. Destarte, o escopo do Apóstolo requer a desintegração da suposta coletividade. O próprio fio de sua argumentação compele-nos a tratar com indivíduos, e não com agrupa­mentos. Todavia de acordo com Watson, o Apóstolo, falando da rejeição de Esaú e da escolha de Jacó, bem como das restantes escolhas de Rom. 9 e 11, emprega os nomes dos dois Patriarcas somente para personifi­car as duas nações, Israel e Edom. Cita em confirma­ção Ml.1:2,3, Gn.25:23. Mas, como Calvino bem observa, a primogenitura tipificava à bênção da ver­dadeira redenção; de sorte que a eleição de Jacó para aquela representava sua eleição para esta. Decida a questão a história dos dois homens. Jacó, medíocre, suplantador, não se tornou no santo, humilde e penitente, enquanto o generoso e impetuoso Esaú dege­nerou no chefe nômade, indiferente e pagão? A esco­lha das duas posteridades, uma para os privilégios da Igreja, a outra para a apostasia pagã, foi a conseqüência da eleição e da rejeição pessoal dos dois progenitores. A glosa arminiana viola todas as leis do pensamento hebraico e do uso religioso. Segundo estas, a posteridade segue o status do seu progenitor. Segundo os arminianos, o progenitor seguiria o status de sua posteridade. Além do que, toda a discussão deste capítulo é pessoal, isto é, Deus trata aqui com indivíduos. A eleição não pode ser de coletividades para privilégios, porque os eleitos são explicitamente excluídos das coletividades às quais pertenciam eclesiasticamente. Veja-se cap. 9: vs. 6,7,15,23,24; cap. 11: vs. 2,4,5,7. “A eleição o alcançou, e os mais foram endurecidos”. A discussão estende-se também a outros, além de hebreus e edomitas, e alcança Faraó, um indivíduo incrédulo, etc. Por fim, as bênçãos concedidas nesta eleição são pessoais. Veja-se Rm.8:29; Ef.1:5; 2Ts.2:13”.[8]
Os arminianos admitem eleição de indivíduos para a sal­vação. Todavia sustentam que esta eleição de indivíduos está condicionada à previsão divina da fé e perseverança dos mes­mos até o fim de suas vidas. Mas isto dificilmente pode ser considerado eleição de indivíduos. Seria, como Dabney observa, “uma seleção de certa qualidade ou peculiaridade, a granjear o favor de Deus para aqueles que a possuem”. A eleição, pois, segundo os arminianos, “não é realmente eleição de indivíduos para uma salvação certa, mas, se permitem o solecismo, é elei­ção de uma condição por força da qual os indivíduos podem chegar á salvação” (Girardeau).
“Vale considerar que os arminianos não podem obje­tar à doutrina calvinista, alegando que ela apresenta um número definido de indivíduos, eleitos para a vida eterna, porque a doutrina arminiana endossa precisa­mente, o mesmo ponto de vista. Segundo a doutrina deles, Deus conhece de antemão os que vão crer e perseverar na fé e na santa obediência até ao fim, isto é, até chegarem à salvação final. Os que vão perseverar assim até ao fim são, naturalmente um número definido. São estes que os arminianos dizem serem eleitos. A conclusão é inevitável: o número dos eleitos é definido”.[9]
A diferença entre calvinistas e arminianos neste particular é a seguinte: — os primeiros ensinam que Deus é quem determina o numero dos eleitos; os últimos ensinam que as pessoas mesmo, ou melhor, o acaso é que determina esse número. Os calvinistas ensinam, de acordo com a declaração explícita das Escrituras, que Deus é quem elege. Os arminianos ensinam que as pessoas se elegem a si mesmas para a salvação, e o acaso decide quanto ao número delas.

8) A Eleição inclui tanto o fim como os meios

“Assim como Deus destinou os eleitos para a glória, assim também, pelo eterno e mui livre propósito da sua vontade, preordenou todos os meios conducentes a esse fim; os que, portanto, são eleitos, achando-se caídos em Adão, são remidos por Cristo, são eficaz­mente chamados para a fé em Cristo pelo seu Espírito, que opera no tempo devido, são justificados, adotados, santificados e guardados pelo seu poder por meio da fé salvadora”.[10]
Este é um fato muito importante relativamente à eleição, porque mostra que não equivale a fatalismo. O Deus que pre­destinou o fim, também predestinou os meios. Paulo, por exem­plo, diz: “Aos que predestinou, a esses também chamou; e aos que chamou, a esses também justificou” (Rm.8:30). A sal­vação é um processo — tem princípio, prossegue e chega ao fim. Na eternidade, Deus incluiu tudo isto em um só decreto que abrangeu tudo; mas no tempo tudo tem sua marcha ou prosseguimento natural. Porque Deus predestina o fim, temos na Bíblia declarações como aquela de Isaias: “Eu sou Deus e não há outro, eu sou Deus e não há outro semelhante a mim; que desde o princípio anuncio o que há de acontecer, e desde a an­tigüidade as coisas que ainda não sucederam; que digo: O meu conselho permanecerá de pé, farei toda a minha vontade” (Is.46:9,10).
Mas porque Ele também predestina os meios, a Bíblia está cheia de apelos e solicitações. Como meios, Deus incluiu em Seu decreto a encarnação, a vida, a morte e a ressurreição de Cristo, a obra do Espírito e também nossa cooperação em sua gloriosa Causa. Incluiu a proclamação do Evangelho, as ora­ções intercessórias dos crentes e todos os meios de graça. O pregador precisa anunciar a mensagem, o pecador precisa ou­vir e crer (mediante a operação do Espírito de Deus, que abre nossos corações, como no caso de Lídia, Atos 16:14). E depois disso, o processo continua na obra de nossa santificação até o dia glorioso de nossa glorificação no céu. Fomos escolhidos ou eleitos “pela santificação do Espírito” (2Ts.2:13). Até mesmo nossas boas obras foram “preparadas de antemão para que andássemos nelas” (Ef.2:10).
Não é correto dizer que, se Deus elegeu os que vão ser salvos, não precisamos pregar, e eles não precisam ouvir e aceitar a mensagem; ou que não adianta orar pelos perdidos, porque, se foram eleitos, serão salvos, e se não foram eleitos, nossas orações não lhes aproveitarão. Não sa­bemos quem são os eleitos, mas sabemos que a pregação do Evangelho e nossas orações intercessórias são meios que Deus incluiu em seu decreto para a realização dos seus planos.
“Tem-se objetado que: se Deus, desde a eternidade, determinou que uma pessoa se converteria e se salva­ria, e outra seria deixada a perecer em seus pecados, nenhum lugar fica para o uso de meios. Como João Wesley, nos “Tratados Doutrinários Metodistas”, fal­samente apresenta a doutrina de Toplady, “Suponha­mos vinte pessoas, das quais dez são ordenadas para a salvação, procedam lá como puderem, e dez são or­denadas para a condenação, a despeito do que fize­rem”. Temos aí uma caricatura absurda e maldosa da doutrina em apreço.
“1º. O decreto da eleição não garante salvação sem fé e sem santidade, mas mediante a fé e a santidade, estando decretados tanto os meios como o fim...
“2º. A doutrina da eleição não supõe que Deus cons­trange o homem contra a liberdade do mesmo. Os não eleitos são simplesmente deixados sós, para procede­rem segundo os impulsos de seus corações perversos. Os eleitos são levados a querer, no dia em que Deus exerce o seu poder por eles neste sentido. Deus opera neles tanto o querer como o efetuar, segundo a sua boa vontade O ato que os leva a querer não lhes supri­me a liberdade.
“3º. O decreto da eleição apenas torna certo o arrependimento e a fé dos eleitos. Todavia a certeza antecedente de um ato livre não é incompatível com a liberdade do mesmo, do contrário a presciência certa de um ato livre seria impossível. O decreto da eleição não causa a fé, e não interfere com o agente em sua ação, e certamente não anula a absoluta necessi­dade da mesma”.[11]
Talvez a melhor ilustração de como Deus predestina tanto o fim como os meios é o caso de Paulo e seus companheiros na tormentosa viagem a Roma (Atos 27:9-44). Em virtude de uma terrível tempestade, perderam toda a esperança de salvamento. Deus, porém, havia decidido levar Paulo a Roma, e por isso en­viou seu anjo para dizer-lhe que tanto ele como seus compa­nheiros seriam salvos. É isto predestinação. O Deus Onipotente garantiu que ninguém perderia a vida. Se predestinação fosse o mesmo que fatalismo, se excluísse o uso dos meios, eles não tinham nada a fazer, senão aguardar calmamente a intervenção miraculosa de Deus. Esta, entretanto não é a espécie de predes­tinação que a Bíblia nos apresenta. A narrativa mostra como Deus empregou vários meios, até que sua promessa tivesse seu cumprimento maravilhoso e completo no devido tempo, de sorte que todos se salvassem, como Ele dissera.
Vejamos como Lucas narra o incidente.
“Açoitados severamente pela tormenta, no dia seguinte já aliviavam o navio. E, ao terceiro dia, nós mesmos, com as próprias mãos, lançamos ao mar a armação do navio. E, não aparecendo, havia já alguns dias, nem sol nem estrelas, caindo sobre nós grande tempestade, dissipou-se afinal toda a esperança de salvamento. Havendo todos estado muito tempo sem comer, Paulo, pondo-se em pé no meio deles, disse: Se­nhores, na verdade era preciso terem-me atendido e não partir de Creta, para evitar este dano e perda. Mas, já agora vos aconselho bom ânimo, porque nenhuma vida se perderá de entre vós, mas somente o navio. Porque esta mesma noite o anjo de Deus, de quem eu sou e a quem sirvo, esteve comigo, dizendo: Paulo, não temas; é preciso que compareças perante César, e eis que Deus por sua graça te deu todos quantos na­vegam contigo”. (Atos 27:18-24).
Se Lucas tivesse parado aí, talvez tirássemos as conclusões que muita gente tira da doutrina da predestinação, confundindo-a com fatalismo e afirmando que ela torna desnecessário o emprego de meios. Lucas, porém, não parou aí com a declaração de que todos com certeza seriam salvos. Prossegue em sua narrativa, mostrando como Deus emprega meios naturais e, se necessário, sobrenaturais, para a consecução de seus fins. Paulo soube antecipadamente que todos seriam salvos da tormenta. Contudo esse conhecimento e certeza não o levaram a cruzar os braços, por julgar que todos os seus companheiros seriam salvos de qualquer modo, fizessem alguma coisa, ou não. Em primeiro lugar, contou-lhes a revelação que recebera. Foi este o primeiro meio empregado para a realização do propósito di­vino. Essa comunicação, seguida do exemplo de Paulo, reanimou-os, com o que ficaram preparados para a luta contra as águas, condição esta que se fazia necessária antes que se achas­sem seguros em terra firme.
Depois de lhes fazer essa comunicação, que revelava o pro­pósito divino, disse Paulo, “Portanto, senhores, tende bom ânimo; pois eu confio em Deus, que sucederá do modo por que me foi dito”. Não tinha dúvida sobre isso. Deus, porém, não ia fazer um milagre desnecessário para cumprir sua palavra. Pelo contrário, usaria todos os meios naturais disponíveis. E por isso Paulo acrescentou, “Porém é necessário que vamos dar a uma ilha”. Noutras palavras, Deus decidira usar determinada ilha como meio de cumprir seu propósito.
Declarado isso pelo Apóstolo, navegaram durante quatorze dias. Na décima quarta noite, lançaram sonda. Foi outro meio usado.  Verificando que se aproximavam de terra e temendo serem atirados contra lugares rochosos, “lançaram da popa quatro âncoras, e oravam para que rompesse o dia” (v. 20). A predestinação divina, revelada quatorze dias antes, não serviu de razão para não lançarem as âncoras. No emprego dessas ân­coras vemos outro meio para a consecução do fim anunciado por Deus. Mas não foi tudo. Depois disso os marinheiros ten­taram fugir. Todavia “disse Paulo ao centurião e aos soldados, Se estes não permanecerem a bordo, não podereis salvar-vos” (v. 31). Esta declaração de Paulo parece contradizer o que Deus lhe havia dito antes, quando lhe garantira que ninguém se perderia. Não há, porém, contradição alguma. Estas pala­vras de Paulo apenas provam que predestinação não é fatalismo. Um dos meios era a tripulação permanecer no navio. Estava acostumada à vida no mar e essa experiência, seus conse­lhos e auxílio eram necessários aos passageiros para que se salvassem do naufrágio. Deus predestina o fim e, por isso, Paulo disse, “Nenhuma vida se perderá de entre vós” (v. 22). Deus, porém, também predestina os meios e, por este motivo, Paulo acrescentou, “Se estes não permanecerem a bordo, vós não po­dereis salvar-vos” (v. 31). A advertência de Paulo foi incluída no plano de Deus como um meio, bem como tudo quanto se seguiu. Os soldados cortaram os cabos do bote em que os ma­rinheiros procuravam fugir, sendo isto outro meio. Em seguida o Apóstolo comeu pão e, por seu exemplo e palavras, levou-os a fazer o mesmo. Temos aí outro meio, porque eles precisavam alimentar-se, para se fortalecerem bastante e assim poderem nadar quando chegasse a ocasião de deixarem o navio. Depois de comerem, fizeram várias outras coisas que também foram meios que Deus incluirá em Seu plano.
Quando pouco faltava para se salvarem, outra coisa acon­teceu que quase frustrou a promessa de Deus, a saber, os soldados eram de parecer que “matassem os presos, para que ne­nhum deles, nadando, fugisse” (v. 42). Se tal parecer fosse aceito, os soldados teriam feito malograr a vontade de Deus, de todos no navio se salvarem e Paulo ir a Roma. Mas a vontade e a palavra de Deus não podem falhar e por isso Ele empregou outro meio, isto é, a simpatia do centurião por Paulo. “O centurião, querendo salvar a Paulo, impediu-os de o fazer” (v. 43). Após o que “ordenou que os que soubessem nadar fossem os primeiros a lançar-se ao mar e alcançar a terra; quanto aos de­mais, que se salvassem uns em tábuas, e outros em destroços do navio” (v. 43, 44). E no fim, depois de empregados todos estes meios, lemos, “E foi assim que todos se salvaram em terra” (v. 44), exatamente como Deus prometera.
Mas ainda não foi tudo. Foram recebidos “com singular humanidade” pelos bárbaros da ilha, os quais acenderam uma fogueira para lhes enxugar as roupas e aquecê-los. Foi quando outro fato aconteceu que parecia contradizer a promessa divina de Paulo ir a Roma — é que ele foi mordido por uma víbora. Desta vez Deus operou um milagre para livrá-lo do veneno “Tendo Paulo ajuntado e atirado à fogueira um feixe de grave­tos, uma víbora, fugindo do calor, prendeu-se-lhe à mão. Quando os bárbaros viram a bicha pendente da mão dele, disseram uns aos outros: Certamente este homem é assassino, porque, salvo do mar, a Justiça não o deixa viver. Porém, ele, sacudin­do o réptil no fogo, não sofreu mal nenhum; mas eles espera­vam que ele viesse a inchar, ou cair morto de repente. Mas, de muito esperar, vendo que nenhum mal lhe sucedia, mudando de parecer, diziam ser ele um deus” (Atos 28:3-6).
Podemos ver, pois, que Deus empregou vários meios natu­rais e, por fim, até seu poder sobrenatural, de sorte a ser reali­zado o seu propósito.
Esta história mostra a harmonia que existe entre os de­cretos de Deus e os atos humanos.
O mesmo acontece na eleição para a salvação. Para conse­guir esse fim, Deus emprega meios naturais e sobrenaturais. A proclamação do Evangelho, a leitura da Bíblia, a celebração dos sacramentos, a audição da mensagem por parte dos pecadores, tudo isto são meios naturais. Mas a chamada eficaz, a regene­ração, a justificação, etc. são meios sobrenaturais.

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Fonte: Escolhidos em Cristo – O Que de Fato a Bíblia Ensina Sobre a Predestinação, Samuel Falcão, Ed. Cultura Cristã, 1997, pág. 133-150.

Extraído do site: http://www.eleitosdedeus.org

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